Opinião
Uma estratégia contraditória na guerra do gás
É a inelutável decadência estratégica da Rússia que leva Putin a recorrer aos hidrocarbonetos como arma para submeter politicamente os estados vizinhos que se afastam da órbita do Kremlin.
Assumir uma posição de liderança no sector energético, garantindo a estabilidade e segurança do mercado, é o objectivo declarado de Vladimir Putin para a presidência russa do G8, mas o recurso à arma do gás para submeter a Ucrânia põe em causa a fiabilidade de Moscovo como parceiro estratégico.
Depois de ter assegurado o controlo directo de 57,4 por cento do sector energético russo, que gera cerca de 25 por cento do produto interno bruto e representa 63 por cento das exportações, o Kremlin prepara, presentemente, a entrada minoritária de capitais estrangeiros nas principais empresas de hidrocarbonetos.
No final do ano passado foi aprovada a eventual venda a investidores estrangeiros de quotas até 49 por cento da Gazprom (que detém 16 por cento das reservas mundiais provadas de gás e representa 20 por cento da produção global) e a Rosneft, que absorveu a Yukos, ultima uma oferta pública de venda em bolsa de 30 por cento do seu capital.
De forma a garantir contactos privilegiados, Putin convidou pessoalmente, sem sucesso, o antigo secretário norte-americano do comércio Donald Evans para a presidência da Rosneft, sendo, em contrapartida, melhor sucedido com o ex-chanceler Gerhard Schröder que não hesitou em aceitar um lugar na direcção do consórcio russo-alemão que vai construir o gasoduto do Báltico.
Um dos objectivos estratégicos de Moscovo é a captação de capitais estrangeiros para investimento no sector dos hidrocarbonetos e o aumento da capacidade de exportação para os mercados do leste da Ásia, dos Estados Unidos e da Europa.
As previsões de vendas de gás natural à Europa Ocidental deverão atingir este ano 151 mil milhões de metros cúbicos, mais 6 mil milhões do que em 2005, e Moscovo visa aumentar a breve prazo a sua actual quota de 25 por cento no abastecimento graças à liberalização do sector energético na União Europeia e à diminuição da produção europeia que, incluindo a Noruega, assegura, presentemente, 61 por cento do consumo.
A opção estratégia do Moscovo justifica a construção, até 2010, do gasoduto no Báltico, entre Vyborg e Greifswald, com um custo avaliado em 5 mil milhões de dólares, de modo a garantir um acesso directo à Alemanha que já adquire à Rússia um terço das suas importações de gás e petróleo. Com uma extensão de 1 295 quilómetros, o gasoduto, que será ligado à Holanda e à Grã-Bretanha, terá uma capacidade entre os 20 a 30 mil milhões de metros cúbicos/ano.
Ao preferir um projecto mais oneroso do que a expansão das redes que atravessam a Belarus e a Ucrânia, o Kremlin não descura, no entanto, o fito de garantir o controlo dos gasodutos que passam pelas duas ex-repúblicas soviéticas. Um dos objectivos foi conseguido em Março de 2004 ao obrigar Minsk a ceder uma participação na Beltransgazcom e a prossecução desta estratégia justifica a pressão declarada sobre Kiev.
A estratégia de penetração no mercado europeu – alargada a investimentos na Sakhalina, dirigidos à Ásia oriental, e no mar de Barents, visando os Estados Unidos – vai, portanto, a par da utilização dos fornecimentos de gás como a arma que a Rússia utiliza ostensivamente para pressionar as ex-repúblicas soviéticas – o chamado «estrangeiro próximo», na terminologia de Moscovo – que tentam optar por alianças alheias aos interesses imediatos russos.
As compras russas de gás ao Turquemenistão (1,2 por cento das reservas mundiais) foram aumentadas este ano em 50 por cento para um total de 30 mil milhões de metros cúbicos, pagos a 65 dólares, mais 21 dólares do que em 2005, com o objectivo de controlar uma fonte de abastecimento alternativa, dado a Rússia não necessitar destes fornecimentos já que detém 27,8 por cento das reservas mundiais de gás, ou seja quase o dobro do estimado para os rivais mais próximos, o Irão, com 15,6 por cento, e o Qatar, com 15,1 por cento.
À excepção da Belarus que, após ceder uma participação na rede de gasodutos, paga menos de 47 dólares por mil metros cúbicos, tal como os separatistas pró-Moscovo da Transdniestria, todos os importadores do «estrangeiro próximo» sofreram recentemente aumentos significativos de preços. Mas o alegado preço de mercado, que não é praticado na Rússia advindo das vendas ao estrangeiro os 5,2 mil milhões de dólares de lucros da Gazprom estimados para 2005, é muito variável e lê-se como um repertório da proximidade política a Moscovo por parte dos estados da ex-União Soviética.
A Geórgia passou a adquirir o gás a 160 dólares, um preço idêntico ao cobrado à Moldova que se opõe à secessão da Transdniestria, enquanto a Arménia, alinhada com a Rússia, paga 54 dólares e o Arzebeijão, rival nos fornecimentos à Europa por via do oleoduto Baku-Ceyhan, é tarifado a 110 dólares. Para os estados do Báltico que escaparam ao controlo de Moscovo – Lituânia, Letónia e Estónia – os preços rondam os 125 dólares, enquanto países como a Itália ou a Alemanha pagam uma média de 135 dólares.
À Ucrânia de Viktor Yuschenko foi, no entanto, proposto um aumento dos preços de 50 para 160 dólares e, posteriormente, para 230 dólares, quando Kiev ameaçou rever o estatuto do arrendamento da base de Sevastopol à marinha russa no Mar Negro. O objectivo imediato é desestabilizar o regime de Yushchenko e levar a uma vitória da oposição pró-Moscovo nas eleições legislativas de Março, invertendo o processo de aproximação à União Europeia e à Nato. A ambição a prazo visa levar Kiev a ceder o controlo directo dos gasodutos por onde passam 90 por cento das exportações russas de gás para a Europa Central e Ocidental.
A imposição de Moscovo revela mais um erro de cálculo em tudo semelhante às ingerências directas que redundaram na Revolução Laranja, em Kiev, e às pressões que alienaram ainda mais a Moldova, a Lituânia ou a Geórgia depois de ameaças e cortes de fornecimentos de gás. Uma eventual derrota dos apoiantes de Yushchenko, actualmente mal colocados nas sondagens, face aos partidários da ex-aliada Yulia Timoshenko e do pró-russo Viktor Yanukovich, estará longe de inverter o recuo estratégico que desde o desmembramento da União Soviética tem vindo a diminuir a influência de Moscovo na Europa Oriental e Central, no Báltico e no Mar Negro.
Se a Ucrânia, privada dos fornecimentos do Turquemenistão, vier a desviar gás destinado aos mercados europeus – uma prática corrente entre 1998 e 2001 quando Yushchenko chefiava o governo – será a fiabilidade de Moscovo como fornecedor que, em última análise, ficará comprometida. Foi a empresa estatal russa quem elevou a parada a níveis incomportáveis para a economia ucraniana para submeter politicamente Kiev.
É a inelutável decadência estratégica da Rússia que leva Putin a recorrer aos hidrocarbonetos como arma para submeter politicamente os estados vizinhos que se afastam da órbita do Kremlin.
Incapaz de renunciar a pretensões de domínio e influência muito além das actuais capacidades da Rússia, a duplicidade da utilização do gás e do petróleo por Putin, ora mercadoria, ora arma de pressão, só confirma as suspeitas que clientes e parceiros políticos têm quanto ao discernimento e sinceridade do presidente russo em matéria de compromissos internacionais.
Artigos relacionados: Rússia: uma potência que aspira ao nível de Portugal, Jornal de Negócios, 19 de Outubro 2005