Opinião
13 de Maio de 2012 às 23:30
Um mundo à deriva
As reuniões anuais de Primavera do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial revelaram duas tendências fundamentais que movem a política global e a economia mundial. A geopolítica está a distanciar-se de forma decidida de um mundo dominado pela Europa e pelos EUA para um mundo com muitas potências regionais, mas sem um líder mundial. E antevê-se uma nova era de instabilidade económica, devido aos limites físicos ao crescimento e à turbulência financeira.
As reuniões anuais de Primavera do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial revelaram duas tendências fundamentais que movem a política global e a economia mundial. A geopolítica está a distanciar-se de forma decidida de um mundo dominado pela Europa e pelos EUA para um mundo com muitas potências regionais, mas sem um líder mundial. E antevê-se uma nova era de instabilidade económica, devido aos limites físicos ao crescimento e à turbulência financeira.
A crise económica da Europa dominou as reuniões deste ano do FMI e do Banco Mundial. O Fundo está a tentar criar um mecanismo de resgate de emergência para o caso de as economias europeias mais débeis precisarem de assistência financeira adicional e virou-se para as principais economias emergentes – Brasil, China, Índia, exportadores de petróleo do Golfo e outros – para que providenciem os recursos necessários. A resposta dessas economias emergentes é clara: sim, mas só em troca de mais poder e mais direitos de voto no FMI. Uma vez que a Europa quer um escudo financeiro internacional, terá de concordar.
É claro que a exigência de mais poder por parte das economias emergentes é uma história bem conhecida. Da última vez que o FMI reforçou os seus recursos financeiros, em 2010, as economias emergentes aceitaram o acordo na condição de os seus direitos de voto aumentarem para cerca de 6%, com a Europa a perder em torno de 4%. Agora, os mercados emergentes estão a exigir ainda mais poder.
A razão inerente não é difícil de perceber. De acordo com os próprios dados do FMI, os actuais membros da União Europeia representavam 31% da economia mundial em 1980 (valor calculado a partir do PIB de cada país, ajustado à paridade do poder de compra). Em 2011, essa representatividade da UE tinha descido para 20% e o Fundo estima que diminua ainda mais: para 17% em 2017.
Este declínio reflecte o fraco crescimento da Europa em termos de população e de pib per capita. Por outro lado, a representação dos países asiáticos em desenvolvimento, incluindo a China e a Índia, no PIB mundial, disparou de cerca de 8% em 1980 para 25% em 2011, estimando-se que atinja os 31% em 2017.
Os Estados Unidos, numa atitude típica dos tempos que correm, insistem que não integrarão um novo fundo de resgate do FMI. O Congresso norte-americano tem vindo a adoptar políticas económicas cada vez mais isolacionistas, especialmente no que se refere à ajuda financeira a outros países. Isso reflete também a diminuição do poder dos EUA no longo prazo. A participação dos EUA no PIB mundial, em torno de 25% em 1980, caiu para 19% em 2011 e deverá passar para 18% em 2017, ano em que o FMI prevê que a China terá superado a economia norte-americana em dimensões absolutas (ajustado pela paridade do poder de compra).
Contudo, a transferência do poder global não se resume ao declínio do Atlântico Norte (UE e EUA) e à ascensão das economias emergentes, especialmente os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Estamos também a transitar de um mundo unipolar, liderado principalmente pelos EUA, para um mundo verdadeiramente multipolar, em que os Estados Unidos, a União Europeia, os BRICS e potências mais pequenas (como a Nigéria e a Turquia) possuem peso regional, mas mostram-se reticentes em assumir uma liderança global, especialmente pelos encargos financeiros que isso acarretaria. A questão não reside apenas no facto de haver cinco ou seis grandes potências actualmente; está também no facto de todas querem avançar à custa das outros.
A transição para este mundo multipolar tem a vantagem de nenhum país ou pequeno bloco poder, isoladamente, dominar os outros. Cada região pode acabar por conseguir ter espaço de manobra para encontrar o seu próprio caminho. Ainda assim, um mundo multipolar accareta grandes riscos, nomeadamente o de que os grandes desafios mundiais não sejam solucionados, uma vez que nenhum país ou região estará apto ou disposto a coordenar uma resposta global, ou mesmo a participar nela.
Os Estados Unidos passaram rapidamente da liderança global para esse tipo de tentativa de avançarem à "boleia" dos outros, parecendo ter evitado a fase de cooperação mundial. Dessa forma, os EUA actualmente eximem-me da cooperação mundial em matéria de alterações climáticas, dos pacotes de ajuda financeira do FMI, das metas de apoio ao desenvolvimento mundial e de outros objectivos de colaboração mundial na provisão de bens públicos globais.
As debilidades da cooperação política global são especialmente preocupantes perante a gravidade dos desafios que têm de ser enfrentados. A questão da turbulência financeira global é o que nos vem de imediato à mente, mas há outros desafios ainda mais significativos.
De facto, as reuniões do FMI/Banco Mundial também abordaram uma outra alteração de fundo da economia mundial: a alta volatilidade e os elevados preços das matérias-primas primárias são actualmente uma grande ameaça à estabilidade e crescimento económico mundial.
Desde 2005, mais ou menos, os preços da maioria das principais "commodities" dispararam. As cotações do petróleo, do carvão, do cobre, do ouro, do trigo, do milho, do minério de ferro e de muitas outras matérias-primas duplicaram, triplicaram ou subiram até mesmo mais do que isso. Os combustíveis, as sementes agrícolas e os minérios foram todos afectados. Houve quem atribuísse esta subida a bolhas nos preços das matérias-primas, devido às baixas taxas de juro e ao acesso fácil ao crédito para especulação nos mercados de "commodities". No entanto, a explicação mais convicente está certamente mais associada aos fundamentais.
A crescente procura mundial de "commodities" primárias, especialmente na China, está a pressionar a oferta física dos recursos globais. Sim, é possível produzir mais petróleo ou cobre, mas com custos marginais de produção muito mais elevados.
Mas o problema vai além das limitações da oferta. O crescimento económico global está também a provocar uma crise ambiental cada vez maior. Os preços dos alimentos estão elevados, actualmente, em parte devido ao facto de as regiões produtoras de todo o mundo estarem a vivenciar os efeitos adversos das alterações climáticas provocadas pelo Homem (como as secas mais pronunciadas e as fortes tempestades) e devido à escassez de água decorrente do excessivo recurso à água doce dos rios e dos aquíferos.
Em suma, a economia mundial está a viver uma crise de sustentabilidade, em que as limitações dos recursos naturais e as pressões ambientais estão a provocar grandes choques nos preços e uma instabilidade ecológica. O desenvolvimento económico precisa de se converter rapidamente num desenvolvimento sustentável, através da adopção de tecnologias e estilos de vida que reduzam as pressões nocivas sobre os ecossistemas da Terra. Isso exigirá também um grau de cooperação mundial que ainda não existe.
As reuniões do FMI/Banco Mundial lembram-nos uma verdade predominante: o nosso mundo, altamente interligado e povoado, tornou-se uma embarcação muito complicada de manobrar. Se quisermos seguir em frente, temos de começar a remar na mesma direcção, mesmo que não haja um único comandante no leme.
Jeffrey D. Sachs é professor de Economia e director do Earth Institute na Universidade de Columbia. É também conselheiro especial do Secretariado Geral da ONU no âmbito dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.
Direitos de autor: Project Syndicate, 2012.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
A crise económica da Europa dominou as reuniões deste ano do FMI e do Banco Mundial. O Fundo está a tentar criar um mecanismo de resgate de emergência para o caso de as economias europeias mais débeis precisarem de assistência financeira adicional e virou-se para as principais economias emergentes – Brasil, China, Índia, exportadores de petróleo do Golfo e outros – para que providenciem os recursos necessários. A resposta dessas economias emergentes é clara: sim, mas só em troca de mais poder e mais direitos de voto no FMI. Uma vez que a Europa quer um escudo financeiro internacional, terá de concordar.
A razão inerente não é difícil de perceber. De acordo com os próprios dados do FMI, os actuais membros da União Europeia representavam 31% da economia mundial em 1980 (valor calculado a partir do PIB de cada país, ajustado à paridade do poder de compra). Em 2011, essa representatividade da UE tinha descido para 20% e o Fundo estima que diminua ainda mais: para 17% em 2017.
Este declínio reflecte o fraco crescimento da Europa em termos de população e de pib per capita. Por outro lado, a representação dos países asiáticos em desenvolvimento, incluindo a China e a Índia, no PIB mundial, disparou de cerca de 8% em 1980 para 25% em 2011, estimando-se que atinja os 31% em 2017.
Os Estados Unidos, numa atitude típica dos tempos que correm, insistem que não integrarão um novo fundo de resgate do FMI. O Congresso norte-americano tem vindo a adoptar políticas económicas cada vez mais isolacionistas, especialmente no que se refere à ajuda financeira a outros países. Isso reflete também a diminuição do poder dos EUA no longo prazo. A participação dos EUA no PIB mundial, em torno de 25% em 1980, caiu para 19% em 2011 e deverá passar para 18% em 2017, ano em que o FMI prevê que a China terá superado a economia norte-americana em dimensões absolutas (ajustado pela paridade do poder de compra).
Contudo, a transferência do poder global não se resume ao declínio do Atlântico Norte (UE e EUA) e à ascensão das economias emergentes, especialmente os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Estamos também a transitar de um mundo unipolar, liderado principalmente pelos EUA, para um mundo verdadeiramente multipolar, em que os Estados Unidos, a União Europeia, os BRICS e potências mais pequenas (como a Nigéria e a Turquia) possuem peso regional, mas mostram-se reticentes em assumir uma liderança global, especialmente pelos encargos financeiros que isso acarretaria. A questão não reside apenas no facto de haver cinco ou seis grandes potências actualmente; está também no facto de todas querem avançar à custa das outros.
A transição para este mundo multipolar tem a vantagem de nenhum país ou pequeno bloco poder, isoladamente, dominar os outros. Cada região pode acabar por conseguir ter espaço de manobra para encontrar o seu próprio caminho. Ainda assim, um mundo multipolar accareta grandes riscos, nomeadamente o de que os grandes desafios mundiais não sejam solucionados, uma vez que nenhum país ou região estará apto ou disposto a coordenar uma resposta global, ou mesmo a participar nela.
Os Estados Unidos passaram rapidamente da liderança global para esse tipo de tentativa de avançarem à "boleia" dos outros, parecendo ter evitado a fase de cooperação mundial. Dessa forma, os EUA actualmente eximem-me da cooperação mundial em matéria de alterações climáticas, dos pacotes de ajuda financeira do FMI, das metas de apoio ao desenvolvimento mundial e de outros objectivos de colaboração mundial na provisão de bens públicos globais.
As debilidades da cooperação política global são especialmente preocupantes perante a gravidade dos desafios que têm de ser enfrentados. A questão da turbulência financeira global é o que nos vem de imediato à mente, mas há outros desafios ainda mais significativos.
De facto, as reuniões do FMI/Banco Mundial também abordaram uma outra alteração de fundo da economia mundial: a alta volatilidade e os elevados preços das matérias-primas primárias são actualmente uma grande ameaça à estabilidade e crescimento económico mundial.
Desde 2005, mais ou menos, os preços da maioria das principais "commodities" dispararam. As cotações do petróleo, do carvão, do cobre, do ouro, do trigo, do milho, do minério de ferro e de muitas outras matérias-primas duplicaram, triplicaram ou subiram até mesmo mais do que isso. Os combustíveis, as sementes agrícolas e os minérios foram todos afectados. Houve quem atribuísse esta subida a bolhas nos preços das matérias-primas, devido às baixas taxas de juro e ao acesso fácil ao crédito para especulação nos mercados de "commodities". No entanto, a explicação mais convicente está certamente mais associada aos fundamentais.
A crescente procura mundial de "commodities" primárias, especialmente na China, está a pressionar a oferta física dos recursos globais. Sim, é possível produzir mais petróleo ou cobre, mas com custos marginais de produção muito mais elevados.
Mas o problema vai além das limitações da oferta. O crescimento económico global está também a provocar uma crise ambiental cada vez maior. Os preços dos alimentos estão elevados, actualmente, em parte devido ao facto de as regiões produtoras de todo o mundo estarem a vivenciar os efeitos adversos das alterações climáticas provocadas pelo Homem (como as secas mais pronunciadas e as fortes tempestades) e devido à escassez de água decorrente do excessivo recurso à água doce dos rios e dos aquíferos.
Em suma, a economia mundial está a viver uma crise de sustentabilidade, em que as limitações dos recursos naturais e as pressões ambientais estão a provocar grandes choques nos preços e uma instabilidade ecológica. O desenvolvimento económico precisa de se converter rapidamente num desenvolvimento sustentável, através da adopção de tecnologias e estilos de vida que reduzam as pressões nocivas sobre os ecossistemas da Terra. Isso exigirá também um grau de cooperação mundial que ainda não existe.
As reuniões do FMI/Banco Mundial lembram-nos uma verdade predominante: o nosso mundo, altamente interligado e povoado, tornou-se uma embarcação muito complicada de manobrar. Se quisermos seguir em frente, temos de começar a remar na mesma direcção, mesmo que não haja um único comandante no leme.
Jeffrey D. Sachs é professor de Economia e director do Earth Institute na Universidade de Columbia. É também conselheiro especial do Secretariado Geral da ONU no âmbito dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.
Direitos de autor: Project Syndicate, 2012.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
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