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10 de Maio de 2006 às 13:59

Timor-Leste: um Estado em risco

A instabilidade política e social tem sido recorrente em Timor-Leste desde a independência, mas a crise mais recente assume um carácter particularmente grave devido ao envolvimento das forças armadas e da polícia.

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O licenciamento, em Março, de um terço dos efectivos das forças armadas, 594 homens na maioria oriundos dos distritos ocidentais, após actos de indisciplina e contestação à alegada discriminação étnica por parte das chefias militares naturais da zona leste, teria de conduzir necessariamente a confrontos.  

A surpresa residiu, essencialmente, na forma como o governo lidou com a contestação, sem acautelar as consequências da desmobilização forçada, e a atitude ambígua do presidente Xanana Gusmão ao declarar a sua impotência para contrariar as decisões do ministro do Interior, Rogério Lobato, do responsável da Defesa, Roque Rodrigues, e do chefe das forças armadas, brigadeiro-general Matan Ruak, avalizadas pelo líder do governo.

Por diversas vezes grupos de ex-guerrilheiros e bandos de jovens afrontaram as autoridades, mas esta é a primeira cisão nas forças armadas e a experiência doutros estados frágeis e multi-étnicos obriga a uma rápida solução negociada, de que poderá ser sinal a criação de uma Comissão de Inquérito para avaliar as queixas dos contestatários, ou à tomada de medidas de força que não estão ao alcance do governo timorense.

Após a independência sucederam-se incidentes com bandos dispersos como a «Sagrada Família», de Cornélio Gama, o grupo «Colimau 2000», de Osório Leki, ou o «Comité para a Defesa Popular da República Popular de Timor-Leste», inicialmente promovido por Abílio Araújo.

Em nenhum dos casos se assistiu à fuga em massa das populações, como sucedeu agora em Díli, o que revela a plena consciência por parte dos habitantes da capital da incapacidade do estado em assegurar a segurança, além de mostrar a persistência dos traumatismos causados pelas violências que de 1975 a 1999 fizeram do quotidiano um jogo pela sobrevivência.
                                       
Polícias contra militares. Rivalidades entre militares e elementos da polícia nacional acumularam-se nos últimos anos e começaram a assumir contornos políticos, radicando-se a ideia de um progressivo reforço de poderes por parte do governo da Fretilin à custa da autoridade do presidente. 

As queixas quanto a abusos das forças policiais, entre cujos cerca de 3 mil efectivos se contam bastantes elementos ligados no passado à administração indonésia, têm vindo a multiplicar-se nos últimos dois anos e estão sumariados num extenso relatório publicado em Abril sob o título «Começos Tortuosos» pela Human Rights Watch.

A criação há dois anos da Unidade de Intervenção Rápida, para controlo de distúrbios sobretudo em zonas urbanas, e da Unidade de Patrulhamento de Fronteira passou para a tutela do Ministério do Interior funções anteriormente desempenhadas pelos militares e contribuiu para exacerbar tensões entre a polícia e sectores das forças armadas.

Insuficiências orçamentais, falta de equipamento e escassas expectativas de promoção levaram parte dos militares a juntarem-se ao turbilhão urbano em que os jovens, mais de 40 por cento da população, não encontram saídas de emprego.

O tradicional culto da honra, da família e dos laços étnicos é outro factor de enquistamento de grupos de interesse diversos na sociedade timorense e degenera frequentemente em actos de violência quando os poderes do estado claudicam como se verificou nas últimas semanas.

O recrudescimento da corrupção, denunciado num relatório de Julho do ano passado do Banco Mundial, contribui para a desconfiança em relação aos poderes públicos, cujos agentes vezes demais se enleiam no patrocínio de familiares, e é agravado pelas insuficiências da administração pública, dos sectores legislativo e judiciários que os programas de assistência não têm conseguido colmatar. A falta de quadros é um problema irremediável a curto prazo em Timor-Leste.

A crise militar revelou, uma vez mais, que a Igreja Católica é a única instituição capaz de mediação política, mas, desta feita, o papel da hierarquia religiosa foi mais resguardado. Depois da campanha contra a reforma experimental do ensino de religião e moral ter degenerado em manifestações antigovernamentais em Abril do ano passado não era de esperar que a hierarquia católica saísse em defesa do executivo de Alkatiri.

Um dos efeitos perversos da instabilidade tem redundado no aumento do peso político da Igreja após a independência ao invés do desejado publicamente por responsáveis religiosos como o bispo de Baucau D. Basílio do Nascimento.

A hierarquia religiosa dá, no entanto, mostras de se distanciar cada vez mais das polémicas e confrontos políticos pessoais, apesar da desconfiança latente em relação à pessoa do primeiro-ministro, para se guardar para as grandes questões como sejam o carácter católico do sistema de educação, a oposição a políticas de controlo de natalidade, a ênfase nos grandes programas de redução da pobreza e na transparência dos processos de decisão legislativa e administrativa.

Mas, quando um 1/5 dos timorenses subsiste com menos de um dólar por dia e a taxa de fertilidade de 7,8 por cento aponta para que a população triplique até 2050, nem a instabilidade política, nem a oposição da Igreja ao controlo de nascimentos permitem encarar com optimismo os objectivos governamentais de reduzir a pobreza extrema para metade até 2015 ou de diminuir significativamente o desemprego superior a 30 por cento nas zonas urbanas.
                                           
Contestação a Alkatri. Outra evidência desta crise essencialmente social, em que os contestatários não apresentam nem objectivos políticos, nem reivindicações claras, é o seu aproveitamento para o aumento da contestação no seio do partido governamental ao núcleo duro de antigos exilados liderado por Mari Alkatiri e que tem em Rogério Lobato e Roque Rodrigues as figuras de proa.

O vice-ministro do Desenvolvimento ao demitir-se constatou o óbvio ao afirmar que «só um investidor maluco» apostaria agora em Timor-Leste. Mas Abel Ximenes revelou, também, ao mostrar-se disponível para procurar potenciais aliados para fazer da Fretilin «um partido mais aberto», quanto o congresso deste mês será decisivo para o grupo dirigente.

Igualmente clara foi a posição tomada por Mari Alkatiri ao considerar que se tentou «criar uma situação de inconstitucionalidade, entre aspas, para permitir a dissolução do Parlamento» e provocar a queda do governo.

O cunho estritamente interno desta crise social, política e militar ficou patente na ausência inicial de acusações significativas da parte de políticos ou religiosos timorenses a alegadas manipulações externas, mas nem esta atitude pode ser dada como adquirida.

As dificuldades na concretização do acordo para exploração do petróleo e gás natural e as críticas de investidores à insistência do governo timorense na construção de uma unidade para tratamento de gás natural liquefeito na costa sul da ilha, contra os planos do consórcio liderado pela companhia australiana Woodside Petroleum, alimentam as desconfianças dos apoiantes de Alkatiri quanto ao eventual aproveitamento externo da crise para pressionar ou derrubar o primeiro-ministro. 

Acautelar as relações com Jacarta. A Indonésia tem sido poupada a alegações de interferência e, pelo menos, este é um sinal de realismo e convergência em torno de uma questão essencial por parte da actual liderança política timorense que tem procurado a todo o custo manter boas relações com Jacarta e não hesitou em condenar as aspirações independentistas na vizinha Papua na sequência dos violentos incidentes de Março na província indonésia.

Xanana Gusmão, Mari Alkatiri e Ramos Horta procuraram, igualmente, conter os danos criados pela divulgação em Outubro do ano passado do relatório da Comissão de Acolhimento Justiça e Verdade.

Apesar da oposição da Igreja Católica os principais políticos de Díli continuam a rejeitar a criação de um tribunal internacional para julgar os responsáveis pelos actos de violência cometidos entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Outubro de 1999 e por acordo com o presidente indonésio Susilo Bambang Yudhoyono optaram pela criação de uma Comissão da Verdade e Amizade, integrando representantes indonésios e timorenses, para investigar os acontecimentos de 1999.

Enquanto o processo que possa conduzir a eventuais amnistias se arrasta, ambos os países têm tentado evitar novas polémicas, mas uma crise grave em Timor-Leste poderá alterar os ânimos. O Tribunal Ad Hoc de Direitos Humanos de Jacarta, por exemplo, após julgar 18 arguidos acabou por apenas impor penas de prisão ao último governador de Timor-Leste, Abílio Osório Soares, entretanto libertado após cumprir quatro meses dos três anos de cadeia a que fora condenado, e ao líder das milícias Aitarak, Eurico Guterres, que começou este mês a purgar uma pena de dez anos.

A mão leve da justiça indonésia levantou protestos, mas tal como em relação aos incidentes fronteiriços pontuais tem prevalecido a vontade de salvaguardar as boas relações entre Díli e Jacarta.

A julgar pelo relatório divulgado este mês pelo International Crisis Group os problemas fronteiriços resumem-se presentemente a casos de travessias ilegais e contrabando e a delimitação final das áreas disputadas apresenta-se como uma questão relativamente fácil de negociar.

Os elementos das milícias que se concentram em Timor-Ocidental não passam, também, segundo o International Crisis Group de uma força política praticamente esgotada, apesar do envolvimento de alguns elementos em actos de criminalidade, banditismo e violência na província.

O número de antigos refugiados, que usufruem de cidadania indonésia, é incerto com as estimativas mais credíveis a referirem entre 10 mil a 40 mil pessoas, concentradas no distrito de Belu, fronteiro a Bobonaro e Covalima, em Timor-Leste, e em Timor-Tengah Utara, adjacente a Oecussi.

Com escasso peso entre os cerca de 1,4 milhões de habitantes de Timor-Ocidental as reivindicações dos antigos refugiados em torno de conflitos sobre posse de terras e acesso a subsídios de integração não aparentam pôr em causa a estabilidade da província indonésia.

O isolamento agravado desde 1999 dos 58 mil timorenses do enclave de Oecussi e o eventual reacender da violência Timor-Leste podem, no entanto, destabilizar a prazo a situação na zona da fronteira, mas, para já, não é aqui que se manifestam os problemas mais graves.

Reforço da presença internacional. Se a crise se prolongar e vincar as diferenças étnicas, isolando e dividindo a actual liderança política, Timor-Leste poderá transformar-se num estado em risco.

Para já a necessidade de assegurar a presença de uma nova missão das Nações Unidas, pelo menos até à realização das eleições legislativas e presidenciais de 2007, gera consenso entre os países com maior peso na decisão e a revisão dos programas de assistência militar e formação de polícias e juízes assume carácter de urgência.

A Austrália já assoberbada com os estados falhados da Melanésia, das ilhas Salomão às Fiji, temente dos riscos de degradação das relações com a Indonésia devido à crise na Papua, e interessada em preservar o acordo para exploração dos recursos de petróleo e gás natural, será um dos principais estados apostados na estabilização de Timor-Leste.

A crescente presença da China no Pacífico Sul e a persistente busca chinesa de novas fontes de fornecimento de hidrocarbonetos contribuem, ainda mais, para vincar o interesse da Austrália em evitar uma degradação da situação que possa fazer surgir em cena outros parceiros alternativos ou concorrentes para cooperação e negócios com Timor-Leste.

A Indonésia a braços com movimentos separatistas na Molucas, Celebes e na Papua, preocupada em consolidar o processo de paz em Aceh e em controlar movimentos integristas islamitas tem, igualmente, todo o interesse em manter a estabilidade na metade leste de Timor.  

A Portugal só resta fazer tudo por tudo para que Timor-Leste escape ao destino da Guiné-Bissau.

A revisão e ampliação dos programas de formação de militares, polícias e juízes, que têm revelado até agora escassos resultados, terão de ser muito provavelmente levadas a cabo o mais depressa possível.

A opção pelo português como língua oficial a par do tétum criou necessariamente um vínculo muito estreito entre o estado português os actuais líderes timorenses e sectores importantes da hierarquia católica.

Uma das possíveis dificuldades com que se pode vir a confrontar Portugal no caso de uma mudança radical de orientação em Timor-Leste advém precisamente dessa identificação entre a maior parte da elite política e o português.

A opção pela língua portuguesa para organização do estado e factor de coesão nacional é vista, correctamente, aliás, por muitos sectores timorenses como um factor de preservação do poder político pelos actuais dirigentes.

Uma das opções estratégicas portugueses deve passar, assim, pelo aceitar recorrer a outras línguas - tétum, bahasa indonésio e inglês - em programas de cooperação sempre que não existam condições para trabalhar com a língua portuguesa.

O português poderá, de facto, contribuir a prazo para a organização do estado e a coesão nacional em Timor-Leste, mas os programas de cooperação nacionais devem evitar confundir-se na medida do possível com apoios políticos declarados a facções políticas.

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