Opinião
Testar a estabilidade financeira dos Estados Unidos
Os EUA estão a adoptar uma legislação de longo alcance para a reforma financeira
Os EUA estão a adoptar uma legislação de longo alcance para a reforma financeira: uma resposta que marca um ponto de referência naquela que é a mais devastadora crise financeira das últimas décadas; uma legislação que dá importância e atenção às muitas fraquezas que a crise deixou a descoberto na regulação e no sistema financeiro do país.
Enquanto a administração Obama e o Congresso norte-americano estavam a perceber as lições retiradas da crise e a discutir as reformas, o Fundo Monetário Internacional estava a avaliar o sistema financeiro da nação sob o Programa de Avaliação do Sector Financeiro (FSAP, do inglês "Financial Sector Assessment Program"). O FSAP foi introduzido na senda da crise asiática em meados dos anos 90, para conseguir uma panorâmica objectiva das forças e das vulnerabilidades dos sistemas financeiros dos países, incluindo em que medida estavam ajustados aos padrões internacionais. A crise mais recente levou o G-20 a ter de afirmar novamente a importância destes "check-ups" do FSAP para a criação de esforços que promovam a estabilidade global. Isso tem feito com que os seus membros se tenham comprometido a submeter-se a eles regularmente.
Portanto, com os EUA a serem examinados, que informação receberá sobre a saúde do seu sistema financeiro e das recentes reformas de regulação?
A análise contém muitas conclusões positivas. Por exemplo, elogia as autoridades norte-americanas pela actuação corajosa e decisiva na eliminação do risco de um colapso sistémico durante o período de extrema agitação no mercado. Embora a crise tenha trazido custos devastadores ao nível nacional e internacional, os erros que levaram à Grande Depressão parecem ter sido evitados.
As autoridades norte-americanas também agiram rapidamente na introdução da reforma legislativa que se debruça sobre as insuficiências que conduziram à crise. A aprovação do "Dodd-Frank Act" pelo Congresso representa um marco na reforma do sector financeiro dos EUA.
Sob esta nova lei, foi estabelecido um regulador do risco sistémico, foi fortalecido o sector das empresas que prestam serviços financeiros mas que não são bancos e foram criados novos mecanismos para lidar com o fracasso de importantes instituições não bancárias de importância sistémica.
Estas reformas fornecem a base para um sistema financeiro mais seguro e mais sólido. Independentemente disso, as avaliações feitas no FSAP salientam que o trabalho ainda não está finalizado e que há ainda muitas coisas cruciais para serem realizadas.
Primeiro, restam importantes zonas de fraqueza, mesmo com o restabelecimento da estabilidade financeira na sua generalidade e com o impulso significativo do capital bancário devido aos resultados dos testes de stress do último ano. Por isso, se o crescimento continuar ao seu ritmo actual, será necessário mais capital, especialmente nas instituições de pequena e média dimensão.
As necessidades parecem controláveis mas, à vista dos recentes acontecimentos na Europa e dos dados dos EUA, a recuperação e a confiança ainda se mantêm frágeis, especialmente com a dívida pública elevada como pano de fundo. Se a economia vier a enfraquecer, a carência de capital bancário adicional poderá ser significativa.
Em segundo lugar, o "Dodd-Frank Act" representa um enorme passo em frente na melhoria da regulação tanto das instituições financeiras individuais como do sistema no seu todo. No entanto, falhou enquanto importante oportunidade para agilizar as agências de supervisão norte-americanas, deixando pouco claro se foram realmente resolvidas as lacunas de longa data e sanados os mandatos conflituosos que contribuíram para a crise. A legislação fornece um esqueleto para a nova arquitectura reguladora. Será uma função do novo Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira ("Financial Stability Oversight Council") a colocação de músculos supervisores nesses ossos: melhorar a cooperação entre as várias agências, colocar maior rigor nas regras de administração de instituições importantes em termos sistémicos e responder com rapidez e com vigor aos riscos sistémicos.
O terceiro ponto passa pelo facto de a redução dos riscos sistémicos exigir um acção determinada para assegurar que as instituições financeiras não são "demasiado grandes para falir". A nova legislação dá passos importantes nesta direcção, ao pedir capital adicional e outros encargos consoante os seus riscos sistémicos. Acrescenta-se a necessidade de preparação de "testamentos de vida" de importantes empresas em termos sistémicos, para que possam ser facilmente liquidadas, e da introdução de um quadro especial de reestruturação, caso estas entrem em falência. Contudo, as medidas não podem ser um substituto de uma supervisão consolidada forte e preventiva: as regras e a regulação não podem ocupar o lugar da "vontade para agir".
Em último lugar, a reforma das finanças do sector imobiliário norte-americano mantém-se inacabada. As políticas públicas para subsidiar empréstimos hipotecários têm tido imensos custos, têm sido ineficazes e têm encorajado a tomada de risco excessiva, o que tem precipitado o sistema para a crise. Actualmente, estão a ser elaboradas várias propostas concretas para resolver este problema. Mas, sem uma resolução decisiva por parte das agências de hipoteca dos EUA (apoiadas pelo governo) e sem cortes consideráveis nos subsídios norte-americanos para os empréstimos hipotecários, não se pode dizer que o sistema financeiro esteja restabelecido.
Em suma, as autoridades dos EUA têm feito muito para fortalecer o sector financeiro. A sua participação na avaliação do FSAP - e a sua concordância na publicação dos resultados - fala pelo seu compromisso para com os esforços globais de forma a assegurar que a crise dos últimos três anos não se repita. Contudo, o verdadeiro teste vai ser a forma como as reformas recentes vão ser implementadas a nível nacional e como vão ser coordenadas a nível internacional.
José Viñals é conselheiro financeiro e director do "Monetary and Capital Markets Department" do Fundo Monetário Internacional.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Diogo Cavaleiro
Enquanto a administração Obama e o Congresso norte-americano estavam a perceber as lições retiradas da crise e a discutir as reformas, o Fundo Monetário Internacional estava a avaliar o sistema financeiro da nação sob o Programa de Avaliação do Sector Financeiro (FSAP, do inglês "Financial Sector Assessment Program"). O FSAP foi introduzido na senda da crise asiática em meados dos anos 90, para conseguir uma panorâmica objectiva das forças e das vulnerabilidades dos sistemas financeiros dos países, incluindo em que medida estavam ajustados aos padrões internacionais. A crise mais recente levou o G-20 a ter de afirmar novamente a importância destes "check-ups" do FSAP para a criação de esforços que promovam a estabilidade global. Isso tem feito com que os seus membros se tenham comprometido a submeter-se a eles regularmente.
A análise contém muitas conclusões positivas. Por exemplo, elogia as autoridades norte-americanas pela actuação corajosa e decisiva na eliminação do risco de um colapso sistémico durante o período de extrema agitação no mercado. Embora a crise tenha trazido custos devastadores ao nível nacional e internacional, os erros que levaram à Grande Depressão parecem ter sido evitados.
As autoridades norte-americanas também agiram rapidamente na introdução da reforma legislativa que se debruça sobre as insuficiências que conduziram à crise. A aprovação do "Dodd-Frank Act" pelo Congresso representa um marco na reforma do sector financeiro dos EUA.
Sob esta nova lei, foi estabelecido um regulador do risco sistémico, foi fortalecido o sector das empresas que prestam serviços financeiros mas que não são bancos e foram criados novos mecanismos para lidar com o fracasso de importantes instituições não bancárias de importância sistémica.
Estas reformas fornecem a base para um sistema financeiro mais seguro e mais sólido. Independentemente disso, as avaliações feitas no FSAP salientam que o trabalho ainda não está finalizado e que há ainda muitas coisas cruciais para serem realizadas.
Primeiro, restam importantes zonas de fraqueza, mesmo com o restabelecimento da estabilidade financeira na sua generalidade e com o impulso significativo do capital bancário devido aos resultados dos testes de stress do último ano. Por isso, se o crescimento continuar ao seu ritmo actual, será necessário mais capital, especialmente nas instituições de pequena e média dimensão.
As necessidades parecem controláveis mas, à vista dos recentes acontecimentos na Europa e dos dados dos EUA, a recuperação e a confiança ainda se mantêm frágeis, especialmente com a dívida pública elevada como pano de fundo. Se a economia vier a enfraquecer, a carência de capital bancário adicional poderá ser significativa.
Em segundo lugar, o "Dodd-Frank Act" representa um enorme passo em frente na melhoria da regulação tanto das instituições financeiras individuais como do sistema no seu todo. No entanto, falhou enquanto importante oportunidade para agilizar as agências de supervisão norte-americanas, deixando pouco claro se foram realmente resolvidas as lacunas de longa data e sanados os mandatos conflituosos que contribuíram para a crise. A legislação fornece um esqueleto para a nova arquitectura reguladora. Será uma função do novo Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira ("Financial Stability Oversight Council") a colocação de músculos supervisores nesses ossos: melhorar a cooperação entre as várias agências, colocar maior rigor nas regras de administração de instituições importantes em termos sistémicos e responder com rapidez e com vigor aos riscos sistémicos.
O terceiro ponto passa pelo facto de a redução dos riscos sistémicos exigir um acção determinada para assegurar que as instituições financeiras não são "demasiado grandes para falir". A nova legislação dá passos importantes nesta direcção, ao pedir capital adicional e outros encargos consoante os seus riscos sistémicos. Acrescenta-se a necessidade de preparação de "testamentos de vida" de importantes empresas em termos sistémicos, para que possam ser facilmente liquidadas, e da introdução de um quadro especial de reestruturação, caso estas entrem em falência. Contudo, as medidas não podem ser um substituto de uma supervisão consolidada forte e preventiva: as regras e a regulação não podem ocupar o lugar da "vontade para agir".
Em último lugar, a reforma das finanças do sector imobiliário norte-americano mantém-se inacabada. As políticas públicas para subsidiar empréstimos hipotecários têm tido imensos custos, têm sido ineficazes e têm encorajado a tomada de risco excessiva, o que tem precipitado o sistema para a crise. Actualmente, estão a ser elaboradas várias propostas concretas para resolver este problema. Mas, sem uma resolução decisiva por parte das agências de hipoteca dos EUA (apoiadas pelo governo) e sem cortes consideráveis nos subsídios norte-americanos para os empréstimos hipotecários, não se pode dizer que o sistema financeiro esteja restabelecido.
Em suma, as autoridades dos EUA têm feito muito para fortalecer o sector financeiro. A sua participação na avaliação do FSAP - e a sua concordância na publicação dos resultados - fala pelo seu compromisso para com os esforços globais de forma a assegurar que a crise dos últimos três anos não se repita. Contudo, o verdadeiro teste vai ser a forma como as reformas recentes vão ser implementadas a nível nacional e como vão ser coordenadas a nível internacional.
José Viñals é conselheiro financeiro e director do "Monetary and Capital Markets Department" do Fundo Monetário Internacional.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Diogo Cavaleiro