Opinião
02 de Fevereiro de 2010 às 11:54
Reconstruir o Haiti
Os horrores do sismo no Haiti continuam a perfilar-se perante nós. O sismo em si terá provavelmente provocado a morte de 100.000 pessoas. A incapacidade de se organizar uma ajuda rápida está a matar mais dezenas de milhares. Mais de um milhão de...
Os horrores do sismo no Haiti continuam a perfilar-se perante nós. O sismo em si terá provavelmente provocado a morte de 100.000 pessoas. A incapacidade de se organizar uma ajuda rápida está a matar mais dezenas de milhares. Mais de um milhão de pessoas estão expostas à fome e às doenças e, com a aproximação da época das chuvas e dos furacões, a população está vulnerável a novos perigos.
Mesmo uma economia tão empobrecida como a do Haiti é um complexo sistema, dependente do comércio entre as zonas rurais e urbanas, dos transportes, da electricidade, dos serviços portuários e das funções governamentais. A economia do Haiti funcionou mal no passado e estava ainda a recompor-se da passagem de quatro furacões em 2008 quando se deu o sismo.
O facto de o sismo ter atingido a capital e demolido por completo todos os centros de actividade social levou à paralisia dos sistemas nos quais assenta a vida urbana quotidiana. Milhões de pessoas estão agora sem sustento e sem meios de subsistência.
A primeira fase de uma resposta eficaz, nas primeiras três ou quatro semanas, deve focalizar-se no resgate de sobreviventes e na estabilização do fornecimento de alimentos, água, serviços médicos e abrigos para a população. Nem o Haiti nem o resto do mundo estavam devidamente equipados para isto e dezenas de milhares de pessoas morrerão desnecessariamente. Os sistemas mundiais de resposta de emergência - especialmente para os países empobrecidos, em zonas que são vulneráveis a sismos, vulcões, secas, furacões e cheias - precisam de ser melhorados.
Depois de aproximadamente um mês, a fase de emergência dará lugar aos esforços de reconstrução e desenvolvimento de longo prazo, que poderão demorar décadas. O Haiti deve evitar que se prolonguem no tempo os acampamentos de tendas, nos quais os sobreviventes são meros refugiados. Mas onde poderão ser instalados os deslocados - que são às centenas de milhares, talvez mesmo mais de um milhão? Como poderemos fornecer-lhes alimentos, água, cuidados de saúde e casas? E de que forma poderão eles começar a contribuir para a revitalização da vida económica de base?
A economia haitiana terá uma estrutura simples nos próximos anos, com a maioria das actividades económicas concentradas essencialmente em cinco sectores: agricultura de pequenos proprietários ou camponeses; reconstrução; serviços portuários e indústria ligeira; comércio local em pequena escala; e serviços públicos, incluindo cuidados de saúde e educação. O principal desafio será sustentar estes cinco sectores, de forma a conjugar a ajuda de curto prazo aos esforços de reconstrução e desenvolvimento de longo prazo.
Em primeiro lugar, devem ser envidados esforços especiais para impulsionar a pequena agricultura e as comunidades rurais. Isto permitirá que centenas de milhares de deslocados regressem às aldeias onde nasceram, e que vivam daquilo que cultivarem. Com fertilizantes, sementes melhoradas, irrigação em pequena escala, formação acelerada e serviços alargados, bem como silos de armazenamento de baixo custo, a produção alimentar do Haiti poderá duplicar ou triplicar dentro de poucos anos, permitindo assim relançar o país e constituir uma nova economia rural.
A reconstrução - de estradas, edifícios, redes sanitárias e de água potável - dará emprego a dezenas de milhares, talvez centenas de milhares, de trabalhadores haitianos do sector da construção e obras públicas, ao mesmo tempo que impulsionará a regeneração das cidades. O Programa Alimentar Mundial (PAM) pode ajudar os pequenos exploradores agrícolas a produzirem mais alimentos nos seus campos. Em seguida, o PAM comprará essa produção, canalizando-a para os programas "alimentos em troca de trabalho" orientados para projectos de construção.
As infra-estruturas do Haiti eram insuficientes antes do sismo (daí o chocante número de mortos) e a maioria delas está actualmente em ruínas. Serão igualmente necessários elevados investimentos de capital para se reequipar os portos e reconstruir uma rede de fornecimento de electricidade.
A recuperação irá exigir também o relançamento, pelo menos numa pequena escala, do sector da indústria manufactureira. O Haiti, tal como a sua vizinha República Dominicana, conseguiu, a determinada altura, criar empregos nas zonas portuárias, incluindo no fabrico de vestuário, de bolsas de basebol e outros pequenos produtos manufacturados. Esses postos de trabalho desapareceram na década de 90, quando os Estados Unidos impuseram um embargo comercial ao Haiti, no âmbito de um esforço para restaurar a democracia. A democracia regressou, mas a economia foi destruída.
Outros países recuperaram das ruínas depois de passarem por desastres naturais e por guerras, e o Haiti pode conseguir o mesmo ao longo dos próximos cinco a dez anos. No entanto, durante a próxima década, especialmente nos próximos cinco anos, não haverá como escapar à dependência do financiamento internacional, e sobretudo da ajuda subvencionada, de modo a financiar o esforço de reconstrução. O mundo já gastou muito dinheiro no Haiti, noutros tempos, mas de forma muito ineficaz. Desta vez, as coisas têm mesmo de ser bem feitas.
É necessária uma clara estratégia para apoiar os sectores-chave anteriormente referidos. Cada um destes sectores requer um plano estratégico quinquenal de recuperação, com um orçamento claro e linhas bem definidas de associação e de responsabilidades que façam a ligação entre o governo haitiano, as organizações não-governamentais (ONG) e doadores institucionais, especialmente os governos e as agências internacionais.
A segunda chave para uma reconstrução bem sucedida do Haiti reside na adequada coordenação da resposta internacional. Existem provavelmente 40 organizações oficiais estrangeiras, se não mais, que estão já empenhadas no esforço da recuperação. Além disso, há centenas, se não mesmo milhares, de ONG haitianas locais. O próprio governo do Haiti encontra-se paralisado pelo desaparecimento de alguns dos seus membros e pela destruição.
Tudo isto deve estar integrado num empreendimento global. Bastará uma única conta bancária para agregar os donativos que permitirão financiar as pesadas despesas necessárias para a recuperação do Haiti. Será necessária uma equipa executiva altamente qualificada para coordenar os esforços de apoio internacional. E tudo isto deve ser criado o mais rapidamente possível, enquanto o interesse internacional se mantém vivo. Muito em breve, o mundo concentrará as suas atenções numa outra crise, muito antes de o Haiti ter começado sequer a recuperar.
Na qualidade de observador dos problemas da cooperação internacional há mais de 25 anos, constato que cada agência tem o seu papel a desempenhar, mas estas tendem mais a disputar o terreno de operação do que a cooperar. As promessas financeiras internacionais são feitas para serem manchete nos jornais e darem boas oportunidades de se aparecer em fotografias, mas acabam por não ser concretizadas. Nós precisamos de que esse dinheiro esteja rapidamente disponível e necessitamos também de uma clara liderança.
O meu nomeado para conduzir o processo é o Banco de Desenvolvimento Inter-Americano (IDB, na sigla em inglês). Presente e empenhado desde há longa data no Haiti, o IDB é o melhor trunfo para coordenar as agências envolvidas no processo, tendo em conta a sua longa experiência em domínios como a agricultura, saúde, educação e qualidade de infra-estruturas. O IDB deverá colaborar estreitamente com uma equipa executiva profissional, composta por profissionais locais e da diáspora.
Reconstruir o Haiti irá provavelmente custar entre 10 e 20 mil milhões de dólares e implicará um esforço a 10 anos. Se começarmos já, salvaremos inúmeras vidas e poderemos evitar uma deterioração da espiral descendente de uma sociedade inteira marcada pela tragédia.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
Mesmo uma economia tão empobrecida como a do Haiti é um complexo sistema, dependente do comércio entre as zonas rurais e urbanas, dos transportes, da electricidade, dos serviços portuários e das funções governamentais. A economia do Haiti funcionou mal no passado e estava ainda a recompor-se da passagem de quatro furacões em 2008 quando se deu o sismo.
O facto de o sismo ter atingido a capital e demolido por completo todos os centros de actividade social levou à paralisia dos sistemas nos quais assenta a vida urbana quotidiana. Milhões de pessoas estão agora sem sustento e sem meios de subsistência.
Depois de aproximadamente um mês, a fase de emergência dará lugar aos esforços de reconstrução e desenvolvimento de longo prazo, que poderão demorar décadas. O Haiti deve evitar que se prolonguem no tempo os acampamentos de tendas, nos quais os sobreviventes são meros refugiados. Mas onde poderão ser instalados os deslocados - que são às centenas de milhares, talvez mesmo mais de um milhão? Como poderemos fornecer-lhes alimentos, água, cuidados de saúde e casas? E de que forma poderão eles começar a contribuir para a revitalização da vida económica de base?
A economia haitiana terá uma estrutura simples nos próximos anos, com a maioria das actividades económicas concentradas essencialmente em cinco sectores: agricultura de pequenos proprietários ou camponeses; reconstrução; serviços portuários e indústria ligeira; comércio local em pequena escala; e serviços públicos, incluindo cuidados de saúde e educação. O principal desafio será sustentar estes cinco sectores, de forma a conjugar a ajuda de curto prazo aos esforços de reconstrução e desenvolvimento de longo prazo.
Em primeiro lugar, devem ser envidados esforços especiais para impulsionar a pequena agricultura e as comunidades rurais. Isto permitirá que centenas de milhares de deslocados regressem às aldeias onde nasceram, e que vivam daquilo que cultivarem. Com fertilizantes, sementes melhoradas, irrigação em pequena escala, formação acelerada e serviços alargados, bem como silos de armazenamento de baixo custo, a produção alimentar do Haiti poderá duplicar ou triplicar dentro de poucos anos, permitindo assim relançar o país e constituir uma nova economia rural.
A reconstrução - de estradas, edifícios, redes sanitárias e de água potável - dará emprego a dezenas de milhares, talvez centenas de milhares, de trabalhadores haitianos do sector da construção e obras públicas, ao mesmo tempo que impulsionará a regeneração das cidades. O Programa Alimentar Mundial (PAM) pode ajudar os pequenos exploradores agrícolas a produzirem mais alimentos nos seus campos. Em seguida, o PAM comprará essa produção, canalizando-a para os programas "alimentos em troca de trabalho" orientados para projectos de construção.
As infra-estruturas do Haiti eram insuficientes antes do sismo (daí o chocante número de mortos) e a maioria delas está actualmente em ruínas. Serão igualmente necessários elevados investimentos de capital para se reequipar os portos e reconstruir uma rede de fornecimento de electricidade.
A recuperação irá exigir também o relançamento, pelo menos numa pequena escala, do sector da indústria manufactureira. O Haiti, tal como a sua vizinha República Dominicana, conseguiu, a determinada altura, criar empregos nas zonas portuárias, incluindo no fabrico de vestuário, de bolsas de basebol e outros pequenos produtos manufacturados. Esses postos de trabalho desapareceram na década de 90, quando os Estados Unidos impuseram um embargo comercial ao Haiti, no âmbito de um esforço para restaurar a democracia. A democracia regressou, mas a economia foi destruída.
Outros países recuperaram das ruínas depois de passarem por desastres naturais e por guerras, e o Haiti pode conseguir o mesmo ao longo dos próximos cinco a dez anos. No entanto, durante a próxima década, especialmente nos próximos cinco anos, não haverá como escapar à dependência do financiamento internacional, e sobretudo da ajuda subvencionada, de modo a financiar o esforço de reconstrução. O mundo já gastou muito dinheiro no Haiti, noutros tempos, mas de forma muito ineficaz. Desta vez, as coisas têm mesmo de ser bem feitas.
É necessária uma clara estratégia para apoiar os sectores-chave anteriormente referidos. Cada um destes sectores requer um plano estratégico quinquenal de recuperação, com um orçamento claro e linhas bem definidas de associação e de responsabilidades que façam a ligação entre o governo haitiano, as organizações não-governamentais (ONG) e doadores institucionais, especialmente os governos e as agências internacionais.
A segunda chave para uma reconstrução bem sucedida do Haiti reside na adequada coordenação da resposta internacional. Existem provavelmente 40 organizações oficiais estrangeiras, se não mais, que estão já empenhadas no esforço da recuperação. Além disso, há centenas, se não mesmo milhares, de ONG haitianas locais. O próprio governo do Haiti encontra-se paralisado pelo desaparecimento de alguns dos seus membros e pela destruição.
Tudo isto deve estar integrado num empreendimento global. Bastará uma única conta bancária para agregar os donativos que permitirão financiar as pesadas despesas necessárias para a recuperação do Haiti. Será necessária uma equipa executiva altamente qualificada para coordenar os esforços de apoio internacional. E tudo isto deve ser criado o mais rapidamente possível, enquanto o interesse internacional se mantém vivo. Muito em breve, o mundo concentrará as suas atenções numa outra crise, muito antes de o Haiti ter começado sequer a recuperar.
Na qualidade de observador dos problemas da cooperação internacional há mais de 25 anos, constato que cada agência tem o seu papel a desempenhar, mas estas tendem mais a disputar o terreno de operação do que a cooperar. As promessas financeiras internacionais são feitas para serem manchete nos jornais e darem boas oportunidades de se aparecer em fotografias, mas acabam por não ser concretizadas. Nós precisamos de que esse dinheiro esteja rapidamente disponível e necessitamos também de uma clara liderança.
O meu nomeado para conduzir o processo é o Banco de Desenvolvimento Inter-Americano (IDB, na sigla em inglês). Presente e empenhado desde há longa data no Haiti, o IDB é o melhor trunfo para coordenar as agências envolvidas no processo, tendo em conta a sua longa experiência em domínios como a agricultura, saúde, educação e qualidade de infra-estruturas. O IDB deverá colaborar estreitamente com uma equipa executiva profissional, composta por profissionais locais e da diáspora.
Reconstruir o Haiti irá provavelmente custar entre 10 e 20 mil milhões de dólares e implicará um esforço a 10 anos. Se começarmos já, salvaremos inúmeras vidas e poderemos evitar uma deterioração da espiral descendente de uma sociedade inteira marcada pela tragédia.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
Jeffrey D. Sachs é professor de Economia e director do Earth Institute na Universidade de Columbia.
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