Opinião
Pode a energia ser governada?
A energia está no centro dos mais prementes desafios globais do mundo. No entanto, tanto a nível global como nacional, a energia é mal governada. O fiasco da Cimeira de Copenhaga sobre as Alterações Climáticas é apenas um exemplo de quão longe...
A energia está no centro dos mais prementes desafios globais do mundo. No entanto, tanto a nível global como nacional, a energia é mal governada. O fiasco da Cimeira de Copenhaga sobre as Alterações Climáticas é apenas um exemplo de quão longe o mundo está de ser capaz de levar a cabo a desesperadamente necessária transição para um sistema de provisão de serviços energéticos sustentável e seguro.
O principal papel da energia nos problemas globais é claro. Cerca de dois terços das emissões de gases com efeito de estufa que estão a provocar alterações climáticas devem-se à utilização de combustíveis fósseis. Uma renovada disputa pelo petróleo está a intensificar os receios de uma nova geração de conflitos geopolíticos. A instabilidade económica global tem uma forte correlação com a volatilidade dos preços das energia. O desenvolvimento económico é, em grande medida, definido pelo processo de superação da pobreza energética, se bem que 1,6 mil milhões de pessoas continuem a não ter sequer acesso aos mais básicos serviços de energia.
Só há pouco tempo é que se tornou claro que estas questões aparentemente distintas são uma manifestação colectiva de um sistema energético disfuncional. Tanto a nível global como nacional, a energia continua a ser conceptualizada e gerida em termos de fontes energéticas e não em termos dos serviços energéticos que essas fontes providenciam. No entanto, os consumidores de serviços energéticos não tem qualquer interesse particular em saber que fontes de energia alimentam a sua produção, transportes, iluminação, aquecimento, sistema de ar condicionado ou electrodomésticos. O actual paradigma serve para enrijecer a tomada de decisões numa altura em que é essencial que haja uma flexibilidade extraordinária e uma rápida mudança.
A nível global, uma série de organizações intergovernamentais tem como incumbência lidar com várias peças do puzzle energético. Entre essas organizações, a mais visível é a Agência Internacional da Energia (AIE). Criada por países consumidores de petróleo nos anos 70, em resposta aos choques de preços da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e pelos embargos por parte dos exportações árabes de crude, a AIE foi bem sucedida no estabelecimento e supervisão de um sistema de reservas petrolíferas nacionais, que tem ajudado a evitar uma recorrência dos mesmos problemas. Com uma equipa pequena mas altamente competente, a AIE tornou-se também na principal fonte de estatísticas energéticas a nível mundial e tem desempenhado um papel preponderante no debate sobre as alterações climáticas.
No entanto, a AIE está longe de ser a verdadeira organização internacional que o seu nome ostenta. A Agência foi criada por e para um pequeno número de abastados países importadores de petróleo, sob a égide da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). E continuam a haver restrições, pois um país só pode ser membro da AIE se pertencer à OCDE, apesar de a crescente procura por parte de países como a China e a Índia está a minar rapidamente a capacidade da AIE para falar pelos importadores de crude como um grupo e para coordenar as respostas entre eles. Apesar de a missão da Agência Internacional da Energia se ter expandido muito além do petróleo desde inícios da década de 90, para passar a incluir políticas energéticas mais abrangentes, alguns dos seus próprios membros, encabeçados pela Alemanha, consideraram os seus registos sobre as energias renováveis tão pouco satisfatórios que criaram recentemente a Agência Internacional das Energias Renováveis (IRENA), da qual qualquer país pode ser membro.
Outras importantes organizações intergovernamentais deparam-se com as suas próprias limitações. O Fórum Mundial da Energia, que nasceu de uma série de reuniões entre ministros da Energia, tem como objectivo disponibilizar um palco comum de debate para os produtores e consumidores de combustíveis fósseis. Já tomou algumas medidas úteis, que poderão ajudar a estabilizar os mercados, tais como a Iniciativa JODI (Joint Oil Data Initiative - Iniciativa Conjunta de Elaboração de Dados sobre o Petróleo), mas desempenha ainda um papel relativamente apagado. O Tratado da Carta da Energia não foi capaz de integrar a Rússia numa estrutura normativa para o transporte internacional através de oleodutos e gasodutos. E o financiamento de energia por parte do Banco Mundial continua fortemente dedicado aos combustíveis fósseis, apesar dos esforços limitados no sentido de estabelecer o financiamento da energia com baixa emissão de dióxido de carbono.
Inúmeras redes e parcerias surgiram em resposta às lacunas na gestão da energia a nível global. A título de exemplo, a Parceria para as Energias Renováveis e Eficiência Energética, fundada no Reino Unido, acabou por se tornar num órgão com muitas partes interessadas que apoia as energias renováveis e a eficiência energética em inúmeros países. Contudo, até agora, este tipo de iniciativas continua a ter uma dimensão bastante reduzida. E não irão funcionar, num futuro previsível, a uma escala capaz de impulsionar uma rápida transição dos combustíveis fósseis para energia limpa, nem facultar serviços de energia a milhares de milhões de novos consumidores.
Tal como acontece com outros problemas a nível global, grande parte da solução depende da capacidade e vontade dos governos nacionais mais poderosos para encontrarem formas de actuarem colectivamente. No entanto, os profundamente imperfeitos sistemas de gestão nacional de energia destes países tornarão essa actuação colectiva ainda mais desafiadora.
Com efeito, a situação tem vindo a piorar de muitas formas. Ao longo das últimas duas décadas, os defensores da privatização prometeram maiores eficiências e preços mais baixos para a energia, mas a incapacidade de fazerem acompanhar as privatizações com a adequada regulação e seu cumprimento tem deixado muitos países com os seus sectores energéticos deficientemente governados e muitas vezes profundamente corruptos.
Além disso, atendendo aos vastos benefícios disponíveis no actual sistema, a luta para levar a cabo uma significativa transição energética enfrenta uma dura resistência por parte de interesses profundamente enraizados. E as forças de mercado, só por si, não conseguem lidar com externalidades de grande envergadura, como as emissões de gases com efeito de estufa, num cenário em que o controlo governamental sobre as principais fontes de energia, tal como o petróleo, é esmagador, e em que um vasto número de pessoas são demasiadamente pobres para constituírem um mercado.
O nosso panorama fracturado em matéria de gestão da energia não foi planeado. Evoluiu aos poucos, com pouca coordenação entre as suas várias partes. Se quisermos evitar ter de pagar um elevado preço económico, estratégico e ambiental por estas deficiências, é essencial que se crie um melhor sistema de estabelecimento e cumprimento de normas acordadas a nível internacional para a energia.
Ann Florini é directora do Centre on Asia and Globalisation na Faculdade Lee Kuan Yew de Políticas Públicas, da Universidade de Singapura, e membro da Brookings Institution.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
O principal papel da energia nos problemas globais é claro. Cerca de dois terços das emissões de gases com efeito de estufa que estão a provocar alterações climáticas devem-se à utilização de combustíveis fósseis. Uma renovada disputa pelo petróleo está a intensificar os receios de uma nova geração de conflitos geopolíticos. A instabilidade económica global tem uma forte correlação com a volatilidade dos preços das energia. O desenvolvimento económico é, em grande medida, definido pelo processo de superação da pobreza energética, se bem que 1,6 mil milhões de pessoas continuem a não ter sequer acesso aos mais básicos serviços de energia.
A nível global, uma série de organizações intergovernamentais tem como incumbência lidar com várias peças do puzzle energético. Entre essas organizações, a mais visível é a Agência Internacional da Energia (AIE). Criada por países consumidores de petróleo nos anos 70, em resposta aos choques de preços da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e pelos embargos por parte dos exportações árabes de crude, a AIE foi bem sucedida no estabelecimento e supervisão de um sistema de reservas petrolíferas nacionais, que tem ajudado a evitar uma recorrência dos mesmos problemas. Com uma equipa pequena mas altamente competente, a AIE tornou-se também na principal fonte de estatísticas energéticas a nível mundial e tem desempenhado um papel preponderante no debate sobre as alterações climáticas.
No entanto, a AIE está longe de ser a verdadeira organização internacional que o seu nome ostenta. A Agência foi criada por e para um pequeno número de abastados países importadores de petróleo, sob a égide da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). E continuam a haver restrições, pois um país só pode ser membro da AIE se pertencer à OCDE, apesar de a crescente procura por parte de países como a China e a Índia está a minar rapidamente a capacidade da AIE para falar pelos importadores de crude como um grupo e para coordenar as respostas entre eles. Apesar de a missão da Agência Internacional da Energia se ter expandido muito além do petróleo desde inícios da década de 90, para passar a incluir políticas energéticas mais abrangentes, alguns dos seus próprios membros, encabeçados pela Alemanha, consideraram os seus registos sobre as energias renováveis tão pouco satisfatórios que criaram recentemente a Agência Internacional das Energias Renováveis (IRENA), da qual qualquer país pode ser membro.
Outras importantes organizações intergovernamentais deparam-se com as suas próprias limitações. O Fórum Mundial da Energia, que nasceu de uma série de reuniões entre ministros da Energia, tem como objectivo disponibilizar um palco comum de debate para os produtores e consumidores de combustíveis fósseis. Já tomou algumas medidas úteis, que poderão ajudar a estabilizar os mercados, tais como a Iniciativa JODI (Joint Oil Data Initiative - Iniciativa Conjunta de Elaboração de Dados sobre o Petróleo), mas desempenha ainda um papel relativamente apagado. O Tratado da Carta da Energia não foi capaz de integrar a Rússia numa estrutura normativa para o transporte internacional através de oleodutos e gasodutos. E o financiamento de energia por parte do Banco Mundial continua fortemente dedicado aos combustíveis fósseis, apesar dos esforços limitados no sentido de estabelecer o financiamento da energia com baixa emissão de dióxido de carbono.
Inúmeras redes e parcerias surgiram em resposta às lacunas na gestão da energia a nível global. A título de exemplo, a Parceria para as Energias Renováveis e Eficiência Energética, fundada no Reino Unido, acabou por se tornar num órgão com muitas partes interessadas que apoia as energias renováveis e a eficiência energética em inúmeros países. Contudo, até agora, este tipo de iniciativas continua a ter uma dimensão bastante reduzida. E não irão funcionar, num futuro previsível, a uma escala capaz de impulsionar uma rápida transição dos combustíveis fósseis para energia limpa, nem facultar serviços de energia a milhares de milhões de novos consumidores.
Tal como acontece com outros problemas a nível global, grande parte da solução depende da capacidade e vontade dos governos nacionais mais poderosos para encontrarem formas de actuarem colectivamente. No entanto, os profundamente imperfeitos sistemas de gestão nacional de energia destes países tornarão essa actuação colectiva ainda mais desafiadora.
Com efeito, a situação tem vindo a piorar de muitas formas. Ao longo das últimas duas décadas, os defensores da privatização prometeram maiores eficiências e preços mais baixos para a energia, mas a incapacidade de fazerem acompanhar as privatizações com a adequada regulação e seu cumprimento tem deixado muitos países com os seus sectores energéticos deficientemente governados e muitas vezes profundamente corruptos.
Além disso, atendendo aos vastos benefícios disponíveis no actual sistema, a luta para levar a cabo uma significativa transição energética enfrenta uma dura resistência por parte de interesses profundamente enraizados. E as forças de mercado, só por si, não conseguem lidar com externalidades de grande envergadura, como as emissões de gases com efeito de estufa, num cenário em que o controlo governamental sobre as principais fontes de energia, tal como o petróleo, é esmagador, e em que um vasto número de pessoas são demasiadamente pobres para constituírem um mercado.
O nosso panorama fracturado em matéria de gestão da energia não foi planeado. Evoluiu aos poucos, com pouca coordenação entre as suas várias partes. Se quisermos evitar ter de pagar um elevado preço económico, estratégico e ambiental por estas deficiências, é essencial que se crie um melhor sistema de estabelecimento e cumprimento de normas acordadas a nível internacional para a energia.
Ann Florini é directora do Centre on Asia and Globalisation na Faculdade Lee Kuan Yew de Políticas Públicas, da Universidade de Singapura, e membro da Brookings Institution.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro
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19.01.2010