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24 de Fevereiro de 2010 às 11:38

Pare, não escute e olhe

"Você gosta de mulatas? Nunca experimentou?! É pá, eu vou-lhe mandar umas mulatas e depois diz-me se gostou, eh eh eh...". Revelo pela primeira vez esta conversa, verídica, para falar de escutas e de segredo de justiça: as frases são de José Sousa Cintra a um jornalista do Negócios. Que interpretação faz desta conversa, assim publicada num jornal? Quando souber a história toda, concluirá outra coisa.

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"Você gosta de mulatas? Nunca experimentou?! É pá, eu vou-lhe mandar umas mulatas e depois diz-me se gostou, eh eh eh...". Revelo pela primeira vez esta conversa, verídica, para falar de escutas e de segredo de justiça: as frases são de José Sousa Cintra a um jornalista do Negócios. Que interpretação faz desta conversa, assim publicada num jornal? Quando souber a história toda, concluirá outra coisa.

Já vamos à história completa. Para já, vamos à mudança do segredo de justiça e do regime de escutas, cujo tiro de partida está dado, sob proposta do procurador geral da República e com o alto patrocínio do primeiro-ministro. Boas intenções. O Inferno está cheio delas.

O segredo de justiça tem sido tão estanque como um coador, dizimando vidas e reputações de suspeitos culpados e de suspeitos inocentes. Na entrevista à SIC, Sócrates não disse frase mais acertada: a publicação de escutas não é apenas uma intrusão na vida privada. É uma ameaça à Justiça. Faltou acrescentar: e à democracia.

Esta coluna não tem sido meiga para com o primeiro-ministro, quanto à suspeita credível de ter estado envolvido num plano soez de assalto à comunicação social. Mas todas as críticas não justificam o aplauso à violação do segredo de justiça que se está a praticar.

As escutas são napalm sobre uma floresta: queima tudo e todos. E a violação de segredo de justiça tem trilhado um caminho em Portugal que deixa um rasto de cadáveres que não terão segunda oportunidade para se refazerem dos danos. Como Ferro Rodrigues, que foi escutado precisamente a dizer que se estava, digamos, nas tintas para o segredo de justiça. O segredo de justiça é que se esteve, digamos, nas tintas para ele: acabou-lhe com a carreira política.

A violação do segredo de justiça é abominável, já o escrevi noutras ocasiões: há seis anos no processo Casa Pia, há seis semanas no "Apito Dourado". Os textos estão disponíveis online [aqui e aqui].

Frases fora de contexto, versões truncadas e sem contraditório, nomes atirados para a fogueira... Os vícios são óbvios. A liberdade é um bem superior em troca de responsabilidade. Se não perde-se. É o que pode acontecer.

Devem os magistrados escutar magistrados, como em desespero de causa admite Cândida Almeida? Pode o segredo de justiça escancarar-se? Cadear-se? Vamos voltar a reformar o Código do Processo Penal à medida de casos específicos?

A possibilidade de magistrados serem escutados para casos de violação de segredo justiça é assustadora. Cândida Almeida está a assumir publicamente que suspeita de magistrados. Escutá-los para este fim seria também escutar... jornalistas em conversas com fontes. Não é o Estado que queremos. Mas é o estado em que estamos.

Mais facilmente as escutas passam a ser limitadas apenas a casos de terrorismo ou tráfico de droga (deixando a corrupção...) do que se chega a esse ponto. Mas é preciso tapar este vazamento que viola o segredo de justiça e que, nisso, viola a própria Justiça. Todos já tivemos conversas telefónicas que, lidas de uma determinada forma, são comprometedoras. Quer ver?

Sim, a conversa com Sousa Cintra é verídica, foi há meia dúzia de anos. O empresário ligou discordando de uma notícia sobre um pedido de falência da sua empresa de cervejas. Assegurando que a Cerveja Cintra era "a melhor do mundo", perguntou se conhecíamos a sua mistura de cerveja branca e preta: a... "Mulata".

Para mudar o descalabro em que a justiça se encontra, o legislador pode perseguir e punir a violação do segredo. Mas se quer mudar mesmo, tem de ir fundo e libertar o sistema de justiça das amarras que lhe atou. A violação do segredo de justiça não é uma excentricidade de magistrados. São as linhas tortas de um sistema que quer escrever direito. E Direito.
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