Opinião
Outro Agosto no Cáucaso
Um ano volvido Mikhail Saakashvili subsiste como presidente desacreditado da Geórgia, a Ossétia do Sul e a Abkázia estão sob tutela de Moscovo, enquanto a União Europeia e a NATO se conformaram à imposição pela força da doutrina dos interesses...
Um ano volvido Mikhail Saakashvili subsiste como presidente desacreditado da Geórgia, a Ossétia do Sul e a Abkázia estão sob tutela de Moscovo, enquanto a União Europeia e a NATO se conformaram à imposição pela força da doutrina dos interesses privilegiados da Rússia no Cáucaso.
Da guerra de Agosto sobrou o putativo estado independente da Ossétia do Sul, de facto cada vez mais dependente da república da Ossétia do Norte e a caminho da integração na Federação Russa, e uma Abkázia dita soberana que oferece a sua costa do Mar Negro a Moscovo a troco da segurança contra o revanchismo georgiano.
Os nacionalistas de Tbilissi tinham falhado nas guerras que se arrastaram entre 1989 e 1992 a imposição do domínio georgiano em grande parte das duas regiões, mas foi o aventureirismo de Saakashvili a consumar a sua perda irremediável.
Um imperativo estratégico
Ao atacar a Ossétia do Sul, conforme insinuara desde a sua eleição em 2004, Saakashvili perdeu-se num crescendo de provocações de parte a parte e forneceu o pretexto com que Moscovo contava para uma intervenção militar.
Vladimir Putin e Dmitri Medvedev tiveram a sua oportunidade para refazer a contento de Moscovo as fronteiras do Cáucaso Meridional e marcar o momento em que inverteram a tendência de refluxo estratégico da Rússia.
A Rússia reforçou ainda subsidiariamente a pressão sobre o reticente Arzebeijão em conflito com uma Arménia pró-russa, mas tentando normalizar relações com a Turquia, por causa do estatuto do enclave de Nagorno Karabach (situado em território azeri e controlado pelos arménios desde 1994).
A entrada formal na esfera de influência russa da Ossétia do Sul - separada de facto desde 1992 de Tbilissi - e da Abkázia, que com os seus 250 mil habitantes seguira o mesmo caminho em 1993, pôs termo a qualquer veleidade de integração da Geórgia na NATO.
Para a Geórgia sobrou um litígio de fronteiras que perdurará por longo tempo, a reclamação de indemnizações ou direito de retorno para 250 mil georgianos desalojados das duas regiões nas guerras do início dos anos 90 e a sorte ingrata de mais de 20 mil portadores de passaportes de Tbilissi perdidos entre 55 mil ossetas.
Nenhum compromisso será viável a curto prazo e a memória dos irredentismos nacionais e étnicos perdurará por décadas como já ficara patente noutro exemplo do início dos anos 90, quando Tbilissi recusou o retorno dos sobreviventes e descendentes dos 120 mil turcos georgianos da região da Meskhetia deportados por Stalin para a Ásia Central em 1944.
Mais a norte, Razam Kadirov está longe de tornar respeitável a Tchetchénia, nas vizinhas repúblicas da Ingushétia e do Daguestão organizações radicais islamitas num cenário de corrupção e violência ameaçam o flanco sul da Rússia, mas a soberania de Moscovo não sofre contestação internacional.
A sumária guerra de Agosto deixou, ainda, um aviso para a Moldova em "conflito congelado" com os separatistas russos da Transdnistria, além de uma séria advertência para Kiev sob a eventual ameaça de contestação ou secessão por parte da maioria russófona das regiões orientais da Ucrânia e na península da Crimeia partilhada por ucranianos, russos e tártaros.
Dos gasodutos às esferas de influência
Dos idos de Agosto o pretexto dos passaportes russos concedidos a ossetas serviu para reiterar, também, a declaração por Moscovo do direito de intervenção em defesa dos 25 milhões de russos residentes nos estados que se tornaram independentes após a desagregação da União Soviética.
No Báltico, estónios, letões e lituanos, integrados na NATO e na União Europeia, podem tomar as declarações do Kremlin como bravata e meio de pressão, mas da Ucrânia ao Cazaquistão tornou-se mais presente o risco de possíveis conflitos por via do estatuto das minorias russas.
Na União Europeia, na Turquia, no Irão e nos Estados Unidos, a guerra de Agosto foi sobretudo encarada sob o prisma dos gasodutos.
Moscovo ganhou mais trunfos para a concretização do "South Stream" no Mar Negro à custa do "Nabuco", via Arzebeijão, Geórgia e Turquia, cujo consórcio formalizado em Julho está longe de ter garantidos abastecimentos do Iraque e do Mar Cáspio.
As rotas dos gasodutos no Cáucaso e no Mar Negro foram efectivamente um dos factores essenciais na guerra de Agosto e a persistente dependência russa das exportações de hidrocarbonetos (tendo por reverso, a falta de alternativas imediatas da União Europeia que recebe da Rússia 40 % do gás natural que consome) é sinal da fragilidade estrutural das pretensões do Kremlin.
Com uma economia pouco diversificada, assente nos hidrocarbonetos, e uma demografia em curva descendente acelerada, maior é, no entanto, a necessidade para o Kremlin de fazer valer a sua doutrina de interesses privilegiados.
Impor o reconhecimento de áreas de influência privilegiada e conter a expansão da NATO que, na sequência da unificação alemã de 1990, já conseguira absorver em 2004 os três estados bálticos anexados pela União Soviética após o pacto Stalin-Hitler de 1939 além de países membros do antigo Pacto de Varsóvia, eram os objectivos essenciais do Kremlin quando ripostou à aguardada investida militar de Saakashvili.
A intervenção russa na Ossétia do Sul contra a Geórgia foi, igualmente, justificada pelo imperativo de responder à declaração de independência do Kosovo em Fevereiro de 2008 que tinha levado o então presidente Putin a exigir "princípios únicos e universais" na resolução de conflitos étnico-nacionais.
Em Agosto de 2008 Moscovo cumpriu ameaças por muito tempo ignoradas.
O Kremlin pôs a claro os limites da capacidade do bloco ocidental em defesa de potenciais aliados no Cáucaso e pôs em xeque uma Ucrânia dividida face a uma eventual adesão à NATO.
A primeira guerra do presidente Medvedev foi a melhor guerra de sempre de Vladimir Putin.
Todos, da China aos Estados Unidos, tomaram nota; muitos, da Ásia Central ao Mar Negro, refizeram cálculos sobre as relações de força.
A Rússia ganhou uma guerra para se dar ao respeito, mas não fez sequer nem mais um amigo.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
Da guerra de Agosto sobrou o putativo estado independente da Ossétia do Sul, de facto cada vez mais dependente da república da Ossétia do Norte e a caminho da integração na Federação Russa, e uma Abkázia dita soberana que oferece a sua costa do Mar Negro a Moscovo a troco da segurança contra o revanchismo georgiano.
Um imperativo estratégico
Ao atacar a Ossétia do Sul, conforme insinuara desde a sua eleição em 2004, Saakashvili perdeu-se num crescendo de provocações de parte a parte e forneceu o pretexto com que Moscovo contava para uma intervenção militar.
Vladimir Putin e Dmitri Medvedev tiveram a sua oportunidade para refazer a contento de Moscovo as fronteiras do Cáucaso Meridional e marcar o momento em que inverteram a tendência de refluxo estratégico da Rússia.
A Rússia reforçou ainda subsidiariamente a pressão sobre o reticente Arzebeijão em conflito com uma Arménia pró-russa, mas tentando normalizar relações com a Turquia, por causa do estatuto do enclave de Nagorno Karabach (situado em território azeri e controlado pelos arménios desde 1994).
A entrada formal na esfera de influência russa da Ossétia do Sul - separada de facto desde 1992 de Tbilissi - e da Abkázia, que com os seus 250 mil habitantes seguira o mesmo caminho em 1993, pôs termo a qualquer veleidade de integração da Geórgia na NATO.
Para a Geórgia sobrou um litígio de fronteiras que perdurará por longo tempo, a reclamação de indemnizações ou direito de retorno para 250 mil georgianos desalojados das duas regiões nas guerras do início dos anos 90 e a sorte ingrata de mais de 20 mil portadores de passaportes de Tbilissi perdidos entre 55 mil ossetas.
Nenhum compromisso será viável a curto prazo e a memória dos irredentismos nacionais e étnicos perdurará por décadas como já ficara patente noutro exemplo do início dos anos 90, quando Tbilissi recusou o retorno dos sobreviventes e descendentes dos 120 mil turcos georgianos da região da Meskhetia deportados por Stalin para a Ásia Central em 1944.
Mais a norte, Razam Kadirov está longe de tornar respeitável a Tchetchénia, nas vizinhas repúblicas da Ingushétia e do Daguestão organizações radicais islamitas num cenário de corrupção e violência ameaçam o flanco sul da Rússia, mas a soberania de Moscovo não sofre contestação internacional.
A sumária guerra de Agosto deixou, ainda, um aviso para a Moldova em "conflito congelado" com os separatistas russos da Transdnistria, além de uma séria advertência para Kiev sob a eventual ameaça de contestação ou secessão por parte da maioria russófona das regiões orientais da Ucrânia e na península da Crimeia partilhada por ucranianos, russos e tártaros.
Dos gasodutos às esferas de influência
Dos idos de Agosto o pretexto dos passaportes russos concedidos a ossetas serviu para reiterar, também, a declaração por Moscovo do direito de intervenção em defesa dos 25 milhões de russos residentes nos estados que se tornaram independentes após a desagregação da União Soviética.
No Báltico, estónios, letões e lituanos, integrados na NATO e na União Europeia, podem tomar as declarações do Kremlin como bravata e meio de pressão, mas da Ucrânia ao Cazaquistão tornou-se mais presente o risco de possíveis conflitos por via do estatuto das minorias russas.
Na União Europeia, na Turquia, no Irão e nos Estados Unidos, a guerra de Agosto foi sobretudo encarada sob o prisma dos gasodutos.
Moscovo ganhou mais trunfos para a concretização do "South Stream" no Mar Negro à custa do "Nabuco", via Arzebeijão, Geórgia e Turquia, cujo consórcio formalizado em Julho está longe de ter garantidos abastecimentos do Iraque e do Mar Cáspio.
As rotas dos gasodutos no Cáucaso e no Mar Negro foram efectivamente um dos factores essenciais na guerra de Agosto e a persistente dependência russa das exportações de hidrocarbonetos (tendo por reverso, a falta de alternativas imediatas da União Europeia que recebe da Rússia 40 % do gás natural que consome) é sinal da fragilidade estrutural das pretensões do Kremlin.
Com uma economia pouco diversificada, assente nos hidrocarbonetos, e uma demografia em curva descendente acelerada, maior é, no entanto, a necessidade para o Kremlin de fazer valer a sua doutrina de interesses privilegiados.
Impor o reconhecimento de áreas de influência privilegiada e conter a expansão da NATO que, na sequência da unificação alemã de 1990, já conseguira absorver em 2004 os três estados bálticos anexados pela União Soviética após o pacto Stalin-Hitler de 1939 além de países membros do antigo Pacto de Varsóvia, eram os objectivos essenciais do Kremlin quando ripostou à aguardada investida militar de Saakashvili.
A intervenção russa na Ossétia do Sul contra a Geórgia foi, igualmente, justificada pelo imperativo de responder à declaração de independência do Kosovo em Fevereiro de 2008 que tinha levado o então presidente Putin a exigir "princípios únicos e universais" na resolução de conflitos étnico-nacionais.
Em Agosto de 2008 Moscovo cumpriu ameaças por muito tempo ignoradas.
O Kremlin pôs a claro os limites da capacidade do bloco ocidental em defesa de potenciais aliados no Cáucaso e pôs em xeque uma Ucrânia dividida face a uma eventual adesão à NATO.
A primeira guerra do presidente Medvedev foi a melhor guerra de sempre de Vladimir Putin.
Todos, da China aos Estados Unidos, tomaram nota; muitos, da Ásia Central ao Mar Negro, refizeram cálculos sobre as relações de força.
A Rússia ganhou uma guerra para se dar ao respeito, mas não fez sequer nem mais um amigo.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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