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Opinião
04 de Março de 2005 às 13:59

Os desprotegidos

Num dos mais belos filmes que vi, nos últimos tempos («Million Dollar Baby»), cuja natureza e desígnio foram absolutamente incompreensíveis para alguns energúmenos em embrião, Clint Eastwood diz a Hilary Swank que ela tem de aprender a proteger-se.

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Não a «defender-se»: a «proteger-se». O filme (uma obra-prima) habita na metáfora que a palavra envolve. O ringue como analogia da vida actual, o jogo sujo como expressão da banalidade do mal, a passagem do tempo como a mais tenaz das punições infligidas à condição humana, a solidão que tudo corrói.

A pausada meditação do filme permite-nos aparelhar ideias e estabelecer nexos coma estrutura associativa do nosso tempo, na qual o «lugar onde» se tornou dramaticamente negociável. Os novos vínculos sociais, os novos projectos ideológicos, a nova produção de valores, as novas formas de economia, emergentes e mal conhecidas, as novas figuras do contrato e da representação induzem-nos a «protegermo-nos». Ou a criar uma outra democracia, que se recomponha sob a forma associativa.

Em «Million Dollar Baby» o apelo é desesperado. À restauração de um modelo de violência que tínhamos esquecido, o filme propõe a recomposição de um outro relacionamento humano, estabelecido na «afinidade» como modelo de «associação». Dir-se-á: mas, nessa interpretação, a «ideologia» é ignorada. Não é: está subjacente ao que Eastwood entende como desintegração da coesão social, e na aglomeração de pequenos sistemas, que se baseiam na sobrevalorização da «pertença».

Há uma reflexão sem proposta, neste «Million Dollar Baby», exactamente porque as grandes obras de arte não têm de inculcar soluções, mas sim de provocar a inquietação. As três personagens principais do filme (mas também as secundárias) são pessoas desamparadas, decentes e íntegras, a quem faltou, somente, uma ração de afecto, por pequena que fosse.

Os valores foram trucidados, os princípios destruídos, os padrões aniquilados. Clint Eastwood compreende que muito do seu mundo desapareceu, sem alternativa. E o mundo dele não está fora do nosso próprio mundo, porque a história é sempre contemporânea. Tese que constitui uma tónica dominante nas suas realizações mais importantes: a verificação de que a fragmentação dos sentimentos provoca a indiferença, a hostilidade recíproca de grupos, e uma inclemente normalização dos comportamentos.

Temos de nos proteger da lógica interna de um imaginário mediático que nos impõe a desqualificação das competências, em nome dos favores do imediatismo. A perturbação dos limites entre gerações é fomentada por uma ideologia manifestamente ao serviço do esquecimento e da amnésia histórica.

Temos de nos proteger da insânia «democrática» que pode possibilitar a ascensão ao poder de pessoas ineptas e, por isso mesmo, perigosíssimas. Temos de nos proteger da massificação de uma cultura estereotipada, apenas capaz de decifrar as estatísticas e as previsões de cálculo. O belíssimo filme de Clint Eastwood fala de tudo isso. Fala de nós, os desprotegidos de todos os desesperos. Diz-nos de emoções e de abandono, de orfandade e de coragem, com discreta compaixão e com a singela grandeza dos demiurgos.

APOSTILA - Se tivesse de atribuir um prémio de reportagem para televisão, ele iria direitinho para «Nas Malhas da Fome», de Sara Bento, e exibido pela TVI na quarta-feira, 23 de Fevereiro. Um impressionante documento sobre o desamparo, que tem Paulo Ferreira como operador de câmara, e Vasco Crespo editor de imagem. Fala de gente simples, rodeada de dignidade e de integridade que não soube, ou não conseuiu, proteger-se de um sistema cruel, desumano e implacável, que atira para a miséria do desemprego milhares e milhares de homens e mulheres indefesos. Um sistema prestável para dar cobertura a «empresários» burlões, recebedores de milhões de euros, provenientes de fundos do Estado, e incapaz de acudir aos ofendidos, aos excluídos, aos jogados para fora de campo. Sara Bento assina um pungente requisitório contra «este» capitalismo sem freio, e contra «esta» democracia danificada.

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