Opinião
O medo nas ruas
Vivemos numa época de selvajaria, imposta por leis reproduzidas da proposta económica, portanto política, que se radicalizou nos Estados Unidos e se desenvolveu até hoje, numa multiplicidade quase irredutível.
Os acontecimentos em França são alarmantes sinais que, mais tarde ou mais cedo, terão o seu mimetismo brutal um pouco por toda a União, onde outros incidentes (Bélgica, Holanda, Alemanha) foram, apesar de tudo, pálidas expressões. Vivemos numa época de selvajaria, imposta por leis reproduzidas da proposta económica, portanto política, que se radicalizou nos Estados Unidos e se desenvolveu até hoje, numa multiplicidade quase irredutível. O direito ao trabalho, tradicionalmente garantido pelas constituições nacionais, deixou de o ser. Na União Europeia há 19 milhões de desempregados, número que tende a aumentar. «A Europa está a rebentar por todas as costuras», afirmou, recentemente, Edgar Morin. E Noam Chomsky, naturalmente execrado pelas várias tribos da Direita, cujo léxico político é cada vez mais anacrónico, adverte: «O liberalismo criou a ideia de que interpreta toda a sociedade, mas, hoje, nem sequer das elites é representante».
Importámos, dos norte-americanos, a precariedade, a insegurança, a flexibilização, a incerteza - sem quaisquer alternativas no horizonte. A frustração fundamental dos europeus, hoje, consiste em que fomos manipulados, através de hábeis propósitos de propaganda, aceitando, entre outras violências, essa aberração chamada «discriminação positiva». Colocados na linha extrema da sobrevivência, temos admitido, com pouca relutância, uma ideologia de desumanização cujas consequências estão à vista.
A Europa precisa de imigrantes. Mas o sistema não tem respostas (nem políticas nem culturais) para suprir os seus próprios desajustamentos, quanto mais para lidar com o problema, especialmente impressionante, dos novos famintos da terra. A exigência de recomposição da «ordem», pode trazer alguns lenitivos. Mas não passam de lenitivos - portanto remendos passageiros num tecido social em evidente decomposição.
O medo expresso, de que as televisões têm dado imagens fortíssimas, resulta da carência da persuasão moral, deslocando a discussão para o campo de um protesto que dá voz a outra realidade: a que nada tem a ver com partidos, ideologia ou utopia. Os revoltados dos guetos de Paris desejam a instauração de uma ordem que respeite o quadro jurídico dos «direitos do homem» e não a «ordem» de Sarkozy, mais propensa ao chicote do que a argumentos sérios.
As características da rebelião são condenáveis. Porém, converteram-se no símbolo de uma exigência generalizada dos que, nos países europeus, foram marginalizados, depois de terem trabalhado duramente e ajudado a equilibrar as economias das nações de «acolhimento». Em Portugal, os focos protestatários já registados (nos comboios, em Carcavelos, na Cova da Moura, por exemplo), entremostram um mal-estar larvar ainda não resolvido, e advertem que as invocações de justiça, formuladas pelos políticos, são falaciosas.
O medo sempre inspirou outros medos. E esses medos provocam a emergência de uma crispação social de consequências imprevisíveis. Os termos do problema consistem no facto de haver uma justiça social e política para quem é possidente e uma justiça ausente para quem pouco ou nada possui. Os acontecimentos em França derivam desses desequilíbrios e dessa indiferença que influenciam o despertar de todas as cóleras.
A Europa tem medo dos imigrados de múltiplas nacionalidades. Os imigrados têm medo dos nacionais dos países onde procuram trabalho e respeito. O Ocidente tem medo do Oriente porque este lhe surge como um inimigo novo e secreto. A inquietação e o desespero vicejam onde a arrogância, o racismo, a xenofobia imperam. E a história destas revoltas não se circunscreve a um tempo limitado. Não é a Europa que está em crise. É o sistema capitalista que estremece. Venceu momentaneamente e impôs uma «justiça» que reserva a si mesma o poder de se opor a quaisquer acções judiciais. Todavia, como no poema de Brecht, isto vai tocar a todos, sobretudo àqueles que cederam à indiferença.
APOSTILA - O programa Prós e Contras, RTP-1, na segunda-feira, resultou num grande acontecimento. O tema «A Cidade de Deus? e dos Homens» permitiu notáveis intervenções de Maria José Nogueira Pinto, António Pinto Leite, D. José Policarpo e prof. Barata-Moura, reitor da Universidade Clássica de Lisboa. O diálogo entre estes dois últimos traduziu-se num admirável exercício de inteligência, de cultura e de respeito mútuos. Um serão inesquecível.