Opinião
Lições da crise: A história não acabou
Comecemos por onde a actual crise começou. Pelo crédito hipotecário "subprime" e pelo sobreendividamento de muitos trabalhadores vulneráveis nos EUA. Um dado ilustra a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado que emergiu nos EUA, ...
Um dado ilustra a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado que emergiu nos EUA, a golpes de política, a partir dos anos setenta: entre 1947 e 1973, época de consenso keynesiano, de contra-poderes sindicais fortes e de mercados muito mais limitados e politicamente enquadrados, o rendimento das famílias mais pobres (20% da população) cresceu, em termos reais, aproximadamente 116,1% e o rendimento das famílias mais ricas (20% da população) cresceu 84,8%; entre 1974 e 2004, na chamada "Era de Milton Friedman", esse crescimento foi, respectivamente, de 2,8% e de 63,6%*.
Continuemos, lembrando que a uma performance económica sobrestimada por muitos e à injustiça social se junta a instabilidade financeira. De facto, trinta anos de desregulamentação financeira por decreto, de descompartimentação e abertura de mercados e de regulação prudencial muito ligeira e complacente viram aumentar o número e a severidade das crises bancárias e/ou cambiais. A amnésia histórica é inseparável do fundamentalismo de mercado que domina a ciência económica e o debate público. As economias emergentes que resistiram a este consenso, mantendo controlos de capitais robustos e uma presença pública forte no sector financeiro, financiando o seu crescimento essencialmente com as suas poupanças internas, resistiram melhor às crises.
Entretanto, não nos esqueçamos de que a liberdade crescente e politicamente instituída do capital financeiro e a sua busca de níveis de rendibilidade tão elevados quanto crescentemente arriscados instauraram um horizonte de curto prazo nas estratégias das empresas e traduziram-se numa chantagem e pressão crescentes sobre a maioria dos assalariados. A sua dignidade e liberdade são crescentemente postas em causa enquanto vigorar uma configuração de capitalismo sem instituições políticas robustas que garantam a partilha dos ganhos de produtividade e que faça depender do mercado o acesso a bens sociais vitais. Não nos esqueçamos também que cerca de dois milhões de famílias norte-americanas perderam as suas casas em 2007.
Os incentivos dirigidos para os gestores de topo, que fizeram explodir as desigualdades salariais, e que se revelaram agora tão perversos no sector financeiro, inscreveram a cobiça e a miopia no centro do sistema económico. A confiança e a moralidade, dois activos intangíveis fundamentais, são permanentemente acossadas pelas actuais estruturas económicas que impõem uma pressão concorrencial intensa. Na esfera financeira, esta inevitavelmente gera um aventureirismo cíclico que alimenta posições crescentemente especulativas, oleadas por uma inovação financeira sem controlo. A sua complexidade resume-se à criação de poderosos mecanismos de alavancagem e a uma ilusória dispersão do risco. O risco sistémico nunca desaparece, bem pelo contrário. Hoje, graças à globalização dos fluxos financeiros, ele torna-se crescentemente global.
Acabemos por onde tudo o que importa começa. Pela política económica e pelas ideias que a suportam. Muitos culpam a política monetária por mais esta crise. É uma análise superficial e que não consegue responder a uma pergunta simples: por que é que as taxas de juro baixas nas décadas do consenso keynesiano do pós-guerra não produziram crises financeiras de monta e serviram, antes, para garantir níveis elevados de investimento produtivo? A resposta está nas palavras proscritas, durante muito tempo, pelos guardiães da ortodoxia económica: nacionalizações, controlos nacionais de capitais, taxação das operações especulativas e uma forte regulamentação que circunscreveu a esfera de influência da finança e separou as suas diferentes actividades.
Ao contrário do que dizem alguns, não se trata aqui de assumir que os decisores políticos são mais inteligentes do que os operadores de mercado. Trata-se apenas de reconhecer que agem num contexto diferente e que podem dispor, assim haja vontade, de uma panóplia de instrumentos de política que podem e devem usar para assegurar estabilidade, justiça social e maior eficiência.
Hoje é de novo claro que o modelo de capitalismo crescentemente purificado não tem como sair espontaneamente da crise, resultante dos seus desenvolvimentos internos, sem causar devastação económica e sofrimento social evitáveis e assimetricamente distribuídos. Vai ser preciso fazer com que o capitalismo seja, de novo, muito mais impuro. Também no campo económico, a história nunca termina. E, às vezes, até parece que se repete.
* Robert Reich, Supercapitalism, Cambridge, Icon Books, 2008, p. 106.
Continuemos, lembrando que a uma performance económica sobrestimada por muitos e à injustiça social se junta a instabilidade financeira. De facto, trinta anos de desregulamentação financeira por decreto, de descompartimentação e abertura de mercados e de regulação prudencial muito ligeira e complacente viram aumentar o número e a severidade das crises bancárias e/ou cambiais. A amnésia histórica é inseparável do fundamentalismo de mercado que domina a ciência económica e o debate público. As economias emergentes que resistiram a este consenso, mantendo controlos de capitais robustos e uma presença pública forte no sector financeiro, financiando o seu crescimento essencialmente com as suas poupanças internas, resistiram melhor às crises.
Os incentivos dirigidos para os gestores de topo, que fizeram explodir as desigualdades salariais, e que se revelaram agora tão perversos no sector financeiro, inscreveram a cobiça e a miopia no centro do sistema económico. A confiança e a moralidade, dois activos intangíveis fundamentais, são permanentemente acossadas pelas actuais estruturas económicas que impõem uma pressão concorrencial intensa. Na esfera financeira, esta inevitavelmente gera um aventureirismo cíclico que alimenta posições crescentemente especulativas, oleadas por uma inovação financeira sem controlo. A sua complexidade resume-se à criação de poderosos mecanismos de alavancagem e a uma ilusória dispersão do risco. O risco sistémico nunca desaparece, bem pelo contrário. Hoje, graças à globalização dos fluxos financeiros, ele torna-se crescentemente global.
Acabemos por onde tudo o que importa começa. Pela política económica e pelas ideias que a suportam. Muitos culpam a política monetária por mais esta crise. É uma análise superficial e que não consegue responder a uma pergunta simples: por que é que as taxas de juro baixas nas décadas do consenso keynesiano do pós-guerra não produziram crises financeiras de monta e serviram, antes, para garantir níveis elevados de investimento produtivo? A resposta está nas palavras proscritas, durante muito tempo, pelos guardiães da ortodoxia económica: nacionalizações, controlos nacionais de capitais, taxação das operações especulativas e uma forte regulamentação que circunscreveu a esfera de influência da finança e separou as suas diferentes actividades.
Ao contrário do que dizem alguns, não se trata aqui de assumir que os decisores políticos são mais inteligentes do que os operadores de mercado. Trata-se apenas de reconhecer que agem num contexto diferente e que podem dispor, assim haja vontade, de uma panóplia de instrumentos de política que podem e devem usar para assegurar estabilidade, justiça social e maior eficiência.
Hoje é de novo claro que o modelo de capitalismo crescentemente purificado não tem como sair espontaneamente da crise, resultante dos seus desenvolvimentos internos, sem causar devastação económica e sofrimento social evitáveis e assimetricamente distribuídos. Vai ser preciso fazer com que o capitalismo seja, de novo, muito mais impuro. Também no campo económico, a história nunca termina. E, às vezes, até parece que se repete.
* Robert Reich, Supercapitalism, Cambridge, Icon Books, 2008, p. 106.
Mais artigos de Opinião
Mais um regresso de Keynes?
01.04.2020
Many Thanks to the English Working Class
26.06.2016