Opinião
Le Monde, Sarkozy e Voltaire
A disputa pelo controlo do diário parisiense "Le Monde" assumiu um notório cunho político com a intromissão de Nicolas Sarkozy que, uma vez mais, revela a visão manipuladora e controleira que muitos políticos têm da imprensa.
A disputa pelo controlo do diário parisiense "Le Monde" assumiu um notório cunho político com a intromissão de Nicolas Sarkozy que, uma vez mais, revela a visão manipuladora e controleira que muitos políticos têm da imprensa.
O "Le Monde" nasceu no final de 1944 da expropriação do diário "Le Temps", marcado pela conivência com os ocupantes alemães, quando Charles de Gaulle encarregou Hubert Beuve-Méry de criar um jornal de referência e projecção internacional.
O jornal deu então voz a correntes cristãs progressistas e a socialistas reformistas, apoiando a política externa soberanista gaulista, e ganhou a sua independência editorial adoptando uma orientação de centro-esquerda.
Os pilares de Le Monde
Marcadamente opinativo e com forte cariz analítico, o "Le Monde" passou por sucessivas mutações editoriais, mantendo uma característica que o distinguia das demais publicações francesas (com excepção do "Libération" lançado pela extrema-esquerda em 1973, mas desde 2005 com um Rothschild como accionista de referência) e definida por Beuve-Méry como essencial à sua "independência política, económica e moral": o controlo da empresa pelos assalariados.
A nomeação do presidente da empresa e do director do jornal são prerrogativas dos trabalhadores que detêm a maioria do capital na holding Le Monde Partenaires et Associés, senhora de 60,40 % do capital da sociedade anónima Le Monde.
A Sociedade dos Redactores, com minoria de bloqueio, tem direito de veto quanto às nomeações do presidente do grupo e do director do diário e os demais accionistas de Le Monde S. A., incluindo os grupos Lagardère e Prisa, actualmente com 17,27 % e 15,01 % do capital, tiveram de acatar reticências e exigências e pactuar estratégias com os jornalistas.
Graves crises financeiras em 1982 e nos anos 90, restruturações, entrada de novos accionistas, investimentos (aquisição do grupo La Vie Catholique em 2004), não vieram alterar o direito de veto dos redactores do jornal que desde 2008, sob a direcção de Éric Fottorino, ensaia uma cura de emagrecimento.
A ameaça de bancarrota e a crise de tesouraria tornaram-se, no entanto, facto iniludível e o "Le Monde" procura sócios capitalistas numa altura em que a circulação está em queda, à semelhança de outros jornais como "Le Parisien/Aujourd`hui en France" e "Le Figaro", cifrando-se em 2009 em 323 mil exemplares, sem compensação possível por parte de receitas publicitárias e assinaturas da edição digital.
O colapso de um modelo de gestão
Com prejuízos mensais na ordem dos dois milhões de euros e dívidas acumuladas rondando os 100 milhões de euros o "Le Monde" está à venda e aos redactores e demais trabalhadores só resta a exigência de promessas de garantia de independência editorial da parte dos futuros accionistas e administradores.
Acabou a era do controlo de jornal por parte da redacção.
Até ao final deste mês ficarão definidos os termos de recapitalização da sociedade proprietária do "Le Monde", só restando em alternativa a declaração de falência.
Os potenciais candidatos tinham 11 de Junho como data limite de apresentação de propostas, mas o prazo foi prorrogado pelo Conselho de Supervisão da sociedade até dia 21.
Na mesa está uma proposta do trio formado por Matthieu Pigasse, vice-presidente europeu do banco Lazard, Pierre Bergé, que fez fortuna na parceira com Yves Saint-Laurent, e Xavier Niel, milionário das telecomunicações.
Claude Perdriel, magnata dos media, proprietário designadamente do semanário de centro-esquerda "Nouvel Observateur", também entra na corrida com outros investidores não identificados e negoceia com Stéphane Richard, presidente da Orange/France Télécom, o maior grupo de telecomunicações do país em que o estado detém 26% do capital.
A Prisa, a braços com o seu próprio programa de restruturação de dívida, não tem de momento possibilidade de aumentar a participação accionista e potenciais interessados como os italianos do grupo L`Espresso ou os suíços da Ringier poderão ainda repensar propostas depois de terem desistido de apresentar ofertas.
O conglomerado de indústrias de defesa, aeronáutica e media, Lagardère que, por sua vez, tem também 34 % da sociedade de exploração da edição digital, pondera salvaguardar a posição no Monde S.A. em função dos accionistas que vierem a entrar para a holding principal.
A exigência de Sarkozy
O lote de interessados por um título falido, mas prestigiado, é diversificado e a intervenção de Sarkozy complicou de sobremaneira o jogo de interesses.
Na semana passada Fottorino foi chamado ao Eliseu e o presidente fez saber que se oponha à entrada do trio Pigasse, Bergé, Niel, ameaçando retirar o subsídio estatal de 45 milhões de euros para restruturação e modernização das tipografias da sociedade Le Monde.
Sarkozy não quer o "Le Monde" na mão de accionistas declaradamente próximos do Partido Socialista.
A dois anos da eleição presidencial o mínimo que Sarkozy exige é que o "Le Monde" siga uma linha de não-hostilização à sua recandidatura, tal como sucedeu na campanha de 2007 quando Alain Minc na presidência do Conselho de Supervisão influenciava a orientação do diário.
Apesar da maior parte da imprensa francesa, tal como a principal estação televisiva a TF1, ser controlada por pessoas próximas do Eliseu, Sarkozy não resistiu à tentação berlusconiana de tentar tudo dominar.
De Gaulle como exemplo
A história do "Le Monde" está cheia de peripécias. Um dos casos mais exemplares, depois da ruptura no final dos anos 50 entre Beuve-Méry e de Gaulle, passa pelo apoio a François Mitterrand na eleição de 1981.
A linha pró União de Esquerda não impediu que o presidente socialista acabasse por ser alvo de implacáveis investigações jornalísticas sobre abusos de poder e corrupção.
De resto, jornais não ganham eleições, mas definem boa parte dos termos da discussão pública e poucos políticos sabem lidar com isso.
O "Le Monde" é jornal de referência para a discussão pública e entre pressões, tentações, erros e manipulações cumpriu com a missão que presidiu à sua criação.
Na vida francesa e na sua projecção internacional , o "Le Monde" foi fundamental para informar e formar opinião tal como, no passado recente, os artigos de Raymond Aron no "Figaro" e em "L`Express" ou de Serge July no "Libération".
Na origem do "Le Monde" esteve De Gaulle, um general de mão pesada, mas senhor de cepa diferente de Sarkozy.
O que se conta do general, por mais apócrifo que seja, encerra uma verdade que Sarkozy nunca vislumbrará.
Nos motins de 1968 (tirava o "Le Monde" 800 mil exemplares), disse o general, referindo-se ao seu crítico impenitente Jean-Paul Sartre, um filósofo irremediavelmente equivocado em matéria política a maior parte do tempo, que "não se prende um Voltaire."
Não se cala um crítico, não faz sequer sentido tentar manipular e controlar tudo e todos por maior que seja a tentação.
Os jornais de qualidade são como Voltaires: imperfeitos e falíveis, mas focos de discussão e ideias.
Enfim, nestas coisas de política e imprensa, como dizia Voltaire, o senso comum, se não mesmo o bom senso, é coisa rara.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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O "Le Monde" nasceu no final de 1944 da expropriação do diário "Le Temps", marcado pela conivência com os ocupantes alemães, quando Charles de Gaulle encarregou Hubert Beuve-Méry de criar um jornal de referência e projecção internacional.
Os pilares de Le Monde
Marcadamente opinativo e com forte cariz analítico, o "Le Monde" passou por sucessivas mutações editoriais, mantendo uma característica que o distinguia das demais publicações francesas (com excepção do "Libération" lançado pela extrema-esquerda em 1973, mas desde 2005 com um Rothschild como accionista de referência) e definida por Beuve-Méry como essencial à sua "independência política, económica e moral": o controlo da empresa pelos assalariados.
A nomeação do presidente da empresa e do director do jornal são prerrogativas dos trabalhadores que detêm a maioria do capital na holding Le Monde Partenaires et Associés, senhora de 60,40 % do capital da sociedade anónima Le Monde.
A Sociedade dos Redactores, com minoria de bloqueio, tem direito de veto quanto às nomeações do presidente do grupo e do director do diário e os demais accionistas de Le Monde S. A., incluindo os grupos Lagardère e Prisa, actualmente com 17,27 % e 15,01 % do capital, tiveram de acatar reticências e exigências e pactuar estratégias com os jornalistas.
Graves crises financeiras em 1982 e nos anos 90, restruturações, entrada de novos accionistas, investimentos (aquisição do grupo La Vie Catholique em 2004), não vieram alterar o direito de veto dos redactores do jornal que desde 2008, sob a direcção de Éric Fottorino, ensaia uma cura de emagrecimento.
A ameaça de bancarrota e a crise de tesouraria tornaram-se, no entanto, facto iniludível e o "Le Monde" procura sócios capitalistas numa altura em que a circulação está em queda, à semelhança de outros jornais como "Le Parisien/Aujourd`hui en France" e "Le Figaro", cifrando-se em 2009 em 323 mil exemplares, sem compensação possível por parte de receitas publicitárias e assinaturas da edição digital.
O colapso de um modelo de gestão
Com prejuízos mensais na ordem dos dois milhões de euros e dívidas acumuladas rondando os 100 milhões de euros o "Le Monde" está à venda e aos redactores e demais trabalhadores só resta a exigência de promessas de garantia de independência editorial da parte dos futuros accionistas e administradores.
Acabou a era do controlo de jornal por parte da redacção.
Até ao final deste mês ficarão definidos os termos de recapitalização da sociedade proprietária do "Le Monde", só restando em alternativa a declaração de falência.
Os potenciais candidatos tinham 11 de Junho como data limite de apresentação de propostas, mas o prazo foi prorrogado pelo Conselho de Supervisão da sociedade até dia 21.
Na mesa está uma proposta do trio formado por Matthieu Pigasse, vice-presidente europeu do banco Lazard, Pierre Bergé, que fez fortuna na parceira com Yves Saint-Laurent, e Xavier Niel, milionário das telecomunicações.
Claude Perdriel, magnata dos media, proprietário designadamente do semanário de centro-esquerda "Nouvel Observateur", também entra na corrida com outros investidores não identificados e negoceia com Stéphane Richard, presidente da Orange/France Télécom, o maior grupo de telecomunicações do país em que o estado detém 26% do capital.
A Prisa, a braços com o seu próprio programa de restruturação de dívida, não tem de momento possibilidade de aumentar a participação accionista e potenciais interessados como os italianos do grupo L`Espresso ou os suíços da Ringier poderão ainda repensar propostas depois de terem desistido de apresentar ofertas.
O conglomerado de indústrias de defesa, aeronáutica e media, Lagardère que, por sua vez, tem também 34 % da sociedade de exploração da edição digital, pondera salvaguardar a posição no Monde S.A. em função dos accionistas que vierem a entrar para a holding principal.
A exigência de Sarkozy
O lote de interessados por um título falido, mas prestigiado, é diversificado e a intervenção de Sarkozy complicou de sobremaneira o jogo de interesses.
Na semana passada Fottorino foi chamado ao Eliseu e o presidente fez saber que se oponha à entrada do trio Pigasse, Bergé, Niel, ameaçando retirar o subsídio estatal de 45 milhões de euros para restruturação e modernização das tipografias da sociedade Le Monde.
Sarkozy não quer o "Le Monde" na mão de accionistas declaradamente próximos do Partido Socialista.
A dois anos da eleição presidencial o mínimo que Sarkozy exige é que o "Le Monde" siga uma linha de não-hostilização à sua recandidatura, tal como sucedeu na campanha de 2007 quando Alain Minc na presidência do Conselho de Supervisão influenciava a orientação do diário.
Apesar da maior parte da imprensa francesa, tal como a principal estação televisiva a TF1, ser controlada por pessoas próximas do Eliseu, Sarkozy não resistiu à tentação berlusconiana de tentar tudo dominar.
De Gaulle como exemplo
A história do "Le Monde" está cheia de peripécias. Um dos casos mais exemplares, depois da ruptura no final dos anos 50 entre Beuve-Méry e de Gaulle, passa pelo apoio a François Mitterrand na eleição de 1981.
A linha pró União de Esquerda não impediu que o presidente socialista acabasse por ser alvo de implacáveis investigações jornalísticas sobre abusos de poder e corrupção.
De resto, jornais não ganham eleições, mas definem boa parte dos termos da discussão pública e poucos políticos sabem lidar com isso.
O "Le Monde" é jornal de referência para a discussão pública e entre pressões, tentações, erros e manipulações cumpriu com a missão que presidiu à sua criação.
Na vida francesa e na sua projecção internacional , o "Le Monde" foi fundamental para informar e formar opinião tal como, no passado recente, os artigos de Raymond Aron no "Figaro" e em "L`Express" ou de Serge July no "Libération".
Na origem do "Le Monde" esteve De Gaulle, um general de mão pesada, mas senhor de cepa diferente de Sarkozy.
O que se conta do general, por mais apócrifo que seja, encerra uma verdade que Sarkozy nunca vislumbrará.
Nos motins de 1968 (tirava o "Le Monde" 800 mil exemplares), disse o general, referindo-se ao seu crítico impenitente Jean-Paul Sartre, um filósofo irremediavelmente equivocado em matéria política a maior parte do tempo, que "não se prende um Voltaire."
Não se cala um crítico, não faz sequer sentido tentar manipular e controlar tudo e todos por maior que seja a tentação.
Os jornais de qualidade são como Voltaires: imperfeitos e falíveis, mas focos de discussão e ideias.
Enfim, nestas coisas de política e imprensa, como dizia Voltaire, o senso comum, se não mesmo o bom senso, é coisa rara.
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