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Pedro Santos Guerreiro psg@negocios.pt 23 de Março de 2010 às 11:40

Fausto Fernando Fragmentos

O PEC que o ministro das Finanças hoje vai defender no Parlamento é um ponto de chegada, não é um ponto de partida. E à chegada o que temos é uma dívida e o seu custo. "Um pacto faustiano", como lhe chamou ontem Vítor Bento. Fausto, na lenda alemã, vendeu a alma ao...

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O PEC que o ministro das Finanças hoje vai defender no Parlamento é um ponto de chegada, não é um ponto de partida. E à chegada o que temos é uma dívida e o seu custo. "Um pacto faustiano", como lhe chamou ontem Vítor Bento.

Fausto, na lenda alemã, vendeu a alma ao Diabo em troca de 24 anos sem envelhecer. Gozou-os. Depois foi parar ao Inferno. A dívida é, pois, faustiana agora porque foi faustosa antes: nós gozámos a dívida, esbanjámos a dívida em baixos retornos e crescimentos económicos medíocres. Agora, pedimos dívida nova para pagar a dívida velha. É esse o "mecanismo de Dona Branca ao contrário", como também lhe chamou Bento: as prestações são pagas com novas entradas de dinheiro. Até ao dia.

Até ao dia em que o custo da dívida dispara, como agora. Primeiro o da República, depois o dos seus bancos, finalmente o dos seus devedores: nós. Ou até ao dia em que o crédito estanca. Nesse dia, a situação resolve-se por si própria: "Sem financiamento não há défice." As contas têm de ser pagas no próprio ano. E o ajustamento é súbito e doloroso.

Só em Portugal é que ainda se diz PEC, Programa de Estabilidade e Crescimento. No resto da Europa, rebaptizou-se o dito como Plano de Austeridade. Porque é só disso que falamos quando falamos de PEC: de austeridade.

A Europa está amarrada a vários anos de governações pasmadas. Muito desemprego e pouco crescimento, quer acima, quer abaixo desse hemisfério infame da economia a que chamam de PIGS. Os Estados europeus gastaram as munições em intervencionismos, com gastos, investimentos e apoios como nunca se havia feito, o que evitou uma nova depressão. Falta evitar a nova recessão, o "double dip". Porque também a retirada daqueles apoios, necessária, será feita pela primeira vez.

A saída de emergência aponta para a China. Se pudesse, a União Europeia mudava por uns meses a sua política do euro para a de outra moeda, o renmimbi, e valorizava-o: para que os chineses substituíssem o seu modelo de crescimento, das exportações para o consumo. E assim nós exportaríamos para a Ásia os nossos produtos... e os nossos défices.

Sem a China a consumir e a Alemanha a comprar mais, temos poucos a quem vender. Os alemães têm as suas letargias e até o seu original Fausto, que Vítor Bento cita. Mas Portugal também tem um Fausto, o de Fernando Pessoa, que drena a hesitação portuguesa, a noite que não chega à alvorada, a tragédia iminente pela procras-tinação. Em "Fausto Fernando
Fragmentos", peça encenada por Ricardo Pais há 20 anos no Teatro Dona Maria II, cantava-se essa Inocência Perdida: a do barco que recusa o peso do oiro do trabalho pelo desejo de, leve, navegar.

Navegámos com demasiada leveza. O PEC não tem nem poesia nem filosofia. Mas talvez não seja heresia perguntar: se aqui está o Diabo, onde pára Deus?

Na economia não há divindade: o salvador é o trabalhador. É preciso trabalhar mais ou melhor, como, profético, afirmava António Horta Osório há ano e meio neste jornal. Mais quer dizer mais horas, mais noites, mais fins-de-semana. Melhor quer dizer produtividade. De outra forma, só se é competitivo reduzindo custos. É o que o PEC faz. Corta salários.

Temos o exemplo de Fausto, um PEC de fragmentos e um Fernando que é ministro. Só sabem de pagar contas. Para sair da crise, não conte com eles. Conte consigo.

psg@negocios.pt




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