Opinião
E, agora, falo-vos de Jorge Amado
A Dom Quixote acaba de editar os três tomos de "Os Subterrâneos da Liberdade", de Jorge Amado
A Dom Quixote acaba de editar os três tomos de "Os Subterrâneos da Liberdade", de Jorge Amado, que marcaram, pelo menos, quatro gerações de leitores, em todo o mundo. É uma narrativa epopeica, escrita no estilo simultaneamente poético e oral que era timbre do grande escritor brasileiro. Grande escritor, repito. A dimensão extraordinária da sua obra, os efeitos morais, ideológicos e essenciais que provocou autorizam a qualificação. Nunca foi um prosador eleito pelo cânone: criou uma linguagem na qual a palavra comum se ergue ao nível das grandes construções vocabulares. E legou-nos um fresco impressionante, onde o amor pelo povo, a urgência na luta pela causa da liberdade, o apelo à resistência e a esperança em dias melhores são componentes fundamentais.
Fui um dos rapazes de então a quem Jorge Amado influenciou. O primeiro livro que dele li, "Os Capitães da Areia", numa edição brasileira da casa José Olympio, adquiri-o por 150 escudos, uma pequena fortuna para a época. Consegui juntar os escudos e comprar o volume a um velho tipógrafo comunista, um homem baixo, escrupuloso e muito culto, que me o vendeu pelo mesmo preço com que o havia obtido. Ainda possuo o exemplar. Decorei páginas da história de Pedro Bala, o menino da praia que irá tornar-se num herói revolucionário, contra a ditadura de Getúlio Vargas.
Mais tarde, li "Jubiabá" e "Terras do Sem Fim", cuja portada ainda sei de cor, em edições de Livros do Brasil, a grande editora do saudoso Souza Pinto. Fui por aí fora. E Amado conduziu-me a descobrir outros autores brasileiros e a deslumbrar-me com a grande prosa e a grande poesia daquele país. Aliás, escrevi um prefácio para o livro "Computa, Computador, Computa" de Millôr Fernandes. Quando fui contratado como redactor do "Diário Popular" sugeri a um dos proprietários, Guilherme Brás Medeiros, o nome de Millôr para colaborar. Assim nasceu, às quartas-feiras, a página "Pif-Paf", que coordenei e editei. Tinha conhecido o famoso humorista numa viagem ao Brasil, ficámos amigos até hoje. Tentei que fosse publicado, em Portugal, a obra magistral de Aníbal Machado, outro grande; assim como os dois volumes de "A Barca de Gleire", troca de correspondência entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, gente de outra pinta e alto coturno. Mais tarde, seleccionei e prefaciei "os Trovões de Antigamente", crónicas de Rubem Braga.
Tudo isto, todo este percurso pessoal devo-o a Jorge Amado, à leitura empolgada dos seus livros, às reminiscências que me levaram, um dia, no Restaurante Brasuca, a abraçar, comovidamente, Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. E a ver o Brasil com os olhos do coração.
Amado era um homem de extrema doçura, de generosidade escancarada, um ser raro que jamais recusou uma palavra de apoio a moços escritores do seu país e, também, de Portugal. Há uma fotografia famosa e inquietante, obtida no aeroporto da Portela, onde se vê, difusamente embora, dois agentes da PIDE, e Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, alguns mais, de que me não lembro, neste instante. É um documento precioso, não só pelo facto em si, mas pelo que significa de coragem e de desafio. Amado estava proibido de entrar em Portugal, devido a ser comunista; então, um grupo de escritores portugueses, entre os quais os dois nomeados, resolveu estar com ele, no restaurante do aeroporto.
Jorge Amado, que viveu no exílio, com a família entretanto constituída, abandonou a militância comunista, sem nunca deixar de acreditar no progresso da humanidade e no princípio de que a História caminha no sentido da libertação do homem. Visitava, então, amiúde, os seus amigos portugueses, instalando-se no Estoril, com a constância fraterna de Lima de Carvalho, outro homem de bem e de alta consciência moral.
Por duas ou três vezes almocei com Amado, com a mulher, Zélia Gattai, e outros amigos. O velho baiano, com a si próprio se etiquetava, era um encanto de conversador. E, nas conversas, nunca faltavam história de mulheres, a sua beleza fascinante, a sensualidade da baiana. Numa das suas últimas entrevistas, à revista "Veja", confessou ser o cúmulo da chatice a inexorável presença da velhice. Disse da sua mágoa por já não poder fazer aquilo para que ainda sentia impulso e desejo.
Uns anos depois, na Casa Fernando Pessoa, repleta de gente entusiasmada, participei num debate acerca da importância ética, estética, social e moral da obra do grande brasileiro. A emoção dele era tão visível que a assistência ficou contagiada. Foi a última vez que estive com ele. No final, assinou três livros, para cada um dos meus três filhos, adicionando: "do tio Jorge."
O tio Jorge abalou por um desabrido dia. Um dia inclemente e ruim. Uns meses antes, em Lanzarote, onde fora conversar com José Saramago, para um livro de "aproximações", foi recebido um e-mail do grande autor de "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água" (já leram?, apressem-se: é uma das obras-primas do baiano). Dizia o e-mail: "No mar, em frente à casa de José, um abraço do Jorge e da Zélia."
Podem ter a certeza de que vale a pena ler, reler ou começar a frequentar Jorge Amado. Podem começar por estes volumes de que falei, no começo desta crónica. Ficam melhores pessoas.
b.bastos@netcabo.pt
Fui um dos rapazes de então a quem Jorge Amado influenciou. O primeiro livro que dele li, "Os Capitães da Areia", numa edição brasileira da casa José Olympio, adquiri-o por 150 escudos, uma pequena fortuna para a época. Consegui juntar os escudos e comprar o volume a um velho tipógrafo comunista, um homem baixo, escrupuloso e muito culto, que me o vendeu pelo mesmo preço com que o havia obtido. Ainda possuo o exemplar. Decorei páginas da história de Pedro Bala, o menino da praia que irá tornar-se num herói revolucionário, contra a ditadura de Getúlio Vargas.
Tudo isto, todo este percurso pessoal devo-o a Jorge Amado, à leitura empolgada dos seus livros, às reminiscências que me levaram, um dia, no Restaurante Brasuca, a abraçar, comovidamente, Luís Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. E a ver o Brasil com os olhos do coração.
Amado era um homem de extrema doçura, de generosidade escancarada, um ser raro que jamais recusou uma palavra de apoio a moços escritores do seu país e, também, de Portugal. Há uma fotografia famosa e inquietante, obtida no aeroporto da Portela, onde se vê, difusamente embora, dois agentes da PIDE, e Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, alguns mais, de que me não lembro, neste instante. É um documento precioso, não só pelo facto em si, mas pelo que significa de coragem e de desafio. Amado estava proibido de entrar em Portugal, devido a ser comunista; então, um grupo de escritores portugueses, entre os quais os dois nomeados, resolveu estar com ele, no restaurante do aeroporto.
Jorge Amado, que viveu no exílio, com a família entretanto constituída, abandonou a militância comunista, sem nunca deixar de acreditar no progresso da humanidade e no princípio de que a História caminha no sentido da libertação do homem. Visitava, então, amiúde, os seus amigos portugueses, instalando-se no Estoril, com a constância fraterna de Lima de Carvalho, outro homem de bem e de alta consciência moral.
Por duas ou três vezes almocei com Amado, com a mulher, Zélia Gattai, e outros amigos. O velho baiano, com a si próprio se etiquetava, era um encanto de conversador. E, nas conversas, nunca faltavam história de mulheres, a sua beleza fascinante, a sensualidade da baiana. Numa das suas últimas entrevistas, à revista "Veja", confessou ser o cúmulo da chatice a inexorável presença da velhice. Disse da sua mágoa por já não poder fazer aquilo para que ainda sentia impulso e desejo.
Uns anos depois, na Casa Fernando Pessoa, repleta de gente entusiasmada, participei num debate acerca da importância ética, estética, social e moral da obra do grande brasileiro. A emoção dele era tão visível que a assistência ficou contagiada. Foi a última vez que estive com ele. No final, assinou três livros, para cada um dos meus três filhos, adicionando: "do tio Jorge."
O tio Jorge abalou por um desabrido dia. Um dia inclemente e ruim. Uns meses antes, em Lanzarote, onde fora conversar com José Saramago, para um livro de "aproximações", foi recebido um e-mail do grande autor de "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água" (já leram?, apressem-se: é uma das obras-primas do baiano). Dizia o e-mail: "No mar, em frente à casa de José, um abraço do Jorge e da Zélia."
Podem ter a certeza de que vale a pena ler, reler ou começar a frequentar Jorge Amado. Podem começar por estes volumes de que falei, no começo desta crónica. Ficam melhores pessoas.
b.bastos@netcabo.pt
Mais artigos do Autor
A ameaça pode atingir todos nós
03.03.2017
O despautério
24.02.2017
O medo como processo do terror
03.02.2017
Uma vida cheia de paixão e de jornais
27.01.2017