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30 de Outubro de 2007 às 13:59

Cidade-pirata

Este é um curso internacional em que o ISCTE participa todos os anos e que agora, em 2007, organiza. Temos alunos de seis universidades europeias e outros tantos professores, todos empenhados em apresentar, no curto espaço de menos de uma semana, ideias d

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É neste contexto que conheço Howard H. Chega por volta das duas da tarde e pergunta-me se há algum sítio onde possa dormir. Há 24 horas que não dorme, garante-me, teve de acabar um trabalho complicado e davam-lhe jeito aquelas cinco horas que nos separam da camioneta que nos há-de levar ao local onde iremos trabalhar nos próximos dias. Um pouco constrangida, imaginem, ofereço-lhe o meu gabinete na esperança de que a existência de uma única cadeira o faça desistir. Howard informa-me que dorme em qualquer parte, mas quando chega ao gabinete muda de ideias e anuncia-me que irá antes visitar o centro da cidade. Ainda bem.

Foi já dentro da camioneta, meio caminho andado e por entre a animação dos estudantes recém-chegados, que detecto Howard num banco perto do corredor. Que tal foi a visita à cidade, pergunto-lhe por mera socialização. E eis que, em vez dos habituais elogios de circunstância, afastando com a mão uma madeixa inexistente, primeiro de sobre a testa e depois de trás da orelha, Howard me informou: “Uma cidade-pirata.” Como assim? Foi a minha primeira reacção. “Bem, é uma cidade empobrecida, com alguma arquitectura interessante, vandalizada e suja, refúgio temporário de quem não a cuida por falta de tempo, interesse ou dinheiro, receptáculo de mensagens desfiguradas... tal como eu imaginei que uma cidade- -pirata pudesse ser.” Disse tudo isto sem o mais leve pestanejar, no inglês algo insolente que caracteriza a pronúncia australiana, entretanto já distraído com a longuíssima fila de trânsito e as obras na auto-estrada. Aproveitei para me ir sentar no meu lugar. Afinal de contas que credibilidade se pode dar a uma pessoa que tem como endereço de email aroomsomewhere (um quarto algures)? Que tem como projecto de vida passar dois anos de cada vez em diferentes universidades do mundo e agora está em Praga como poderia estar noutro lugar qualquer? E que ainda por cima é professor de empreendedorismo?

Determinada a que as observações de Howard não me estragassem o programa, resolvi desabafar com outro colega, o Matthias. Eu sei que Matthias gosta de Lisboa, tem-mo afirmado várias vezes, viveu aqui alguns anos da sua infância, o que pensa ele destes comentários? “Não te preocupes”, sossegou-me. “Howard não conhece os portugueses. Ele não sabe que vocês não ligam às coisas exteriores, que o que está por dentro é mais importante do que está por fora.” Angustiada com esta nova revelação resolvi não prosseguir a conversa e durante dois dias ignorei Howard. Quase no fim do programa, porém, enfrentei o seu permanente tom de enfado para lhe pedir que me voltasse a explicar as razões da sua ideia. Respondeu-me com um ditado que pode ser utilizado em qualquer língua: “Uma imagem vale mais do que mil palavras. Amanhã estaremos de novo em Lisboa, eu mostro-te.”

Descemos a Av. das Forças Armadas pisando as folhas de muitos Outonos, entrámos no Metro onde os “tenha a bondade de me auxiliar” insistentemente gritados não precisaram de tradução e saímos nos Restauradores. Antevendo o que me esperava, tentei puxar Howard para o lado direito, para a saída junto ao Avenida Palace, mas ele não se deixou convencer. E foi atravessando o corredor do lado do parque com as paredes de cantaria cobertas de cima a baixo por riscos vermelhos e pretos, uns mais grossos outros mais finos, que Howard me explicou que na Roma antiga, quando se pretendia transmitir uma mensagem, garatujava-se uma parede. “Que outra coisa poderiam eles fazer? Não havia email nem SMS” e encolheu os ombros com displicência.

Caminhámos depois em direcção à Rua Augusta. Por entre as mesas das esplanadas, pisando os guardanapos no chão, as palhinhas, alguns copos e outros objectos descartáveis, Howard informou-me que na Austrália os concessionários de espaços púbicos são obrigados a mantê-los permanentemente limpos sob pena de pesadas multas e de verem as suas licenças confiscadas. Mas o passeio não acabava ali. Subimos as escadas de Santa Justa e entrámos na Rua do Carmo. Não disse a Howard que aquela era a minha rua e que ali existe um prédio que jamais vi vandalizado, o dos Armazéns do Chiado, apesar das suas três enormes e desabusadas frentes. Porque um prédio não faz uma cidade. Subimos a Rua Garrett, o Largo Camões, o do Calhariz... Para onde me levaria Howard? O nosso destino era o miradouro de Santa Catarina. Pensei que o australiano se tinha reconciliado com a nossa cidade quando ali, a pouca distância da Praça do Comércio, onde os taipais eternamente nos protegem do azul do rio, abriu os braços como quem quer, mas não pode, abarcar toda a paisagem e exclamou: “Curioso... é extraordinário como as cidades-piratas têm sempre vistas deslumbrantes.”

O gesto durou apenas um breve segundo. Howard de imediato se voltou e me forçou a olhar para a sujidade do chão, para as garrafas de cerveja amontoadas e partidas – que extraordinário seria se as companhias de cerveja se inspirassem no slogan da IKEA “nunca verão um saco de plástico nosso dependurado numa árvore” – para os utilizadores habituais do miradouro e suas práticas e, finalmente, para a face irada da estátua do Adamastor com o corpo pintalgado de tinta vermelha e verde. Olhando a estátua de frente reflecti sobre o título a dar a este artigo: cidade-pirata ou cidade de piratas? É que não é bem a mesma coisa.

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