Opinião
A propósito da Igreja velha
A Igreja, em Portugal, é extremamente conservadora. Nada de novo. Porém, ocasionalmente, vozes dissentes alertam a própria instituição e a sociedade para os seus males e malformações.
A Igreja, em Portugal, é extremamente conservadora. Nada de novo. Porém, ocasionalmente, vozes dissentes alertam a própria instituição e a sociedade para os seus males e malformações. D. António Ferreira Gomes, que foi bispo do Porto, perseguido e homiziado por Salazar, é uma dessas grandes referências. Aliás, ele é um dos grandes intelectuais e pensadores portugueses, conhecedor profundo de latim, grego, francês, inglês e alemão, e de literatura clássica e moderna. Uma carta que enviou ao ditador, e na qual não só relatava como verberava a miséria do País, ocultada pelos serviços de propaganda do regime. Essa carta surge na decorrência do vendaval Humberto Delgado que, em 1958, varreu a pátria e entusiasmou as populações.
Ferreira Gomes foi como que uma luz para os chamados "católicos progressistas", que reunia os "desenganados do catolicismo" numa procura de outros caminhos para uma instituição ancilosada e cúmplice do salazarismo. É importante ler o prefácio de D. António Ferreira Gomes à terceira edição de "Contos Exemplares", de Sophia de Melo Breyner Andersen. Nesse texto percebe-se a dimensão do prelado e a grandeza do homem.
Antes dele outros houve, como o padre Abel Varzim, que editou um jornal, "O Trabalhador", inspirado no movimento dos padres-operários, e que, de certo modo, seguia as teses da revista "Esprit", e as reflexões de Emanuel Mounier sobre o "personalismo", que contrariavam as orientações ortodoxas do Vaticano. Há um volume, "O Personalismo", organizado por João Bénard da Costa, que penso ser o primeiro documento publicado em Portugal. Mas as vozes e as presenças, digamos contestatárias, tiveram, no nosso País, espaçadamente, corpo e expressão. Estou a lembrar-me do padre Mário de Oliveira, que, em plena guerra colonial, proferia homilias a favor da paz e contra os horrores do conflito; de Frei Bento Domingos, cujos artigos no "Público" constituíam estimulantes momentos de reflexão; e de D. Manuel Martins, do lendário bispo de Setúbal, que se insurgiu como tenaz adversário das políticas [Governo de Mário Soares] que haviam conduzido à fome naquela região; ou de D. Januário Torgal Ferreira - para só referir alguns.
Anteontem li, no "Diário de Notícias", uma desenvolvida notícia sobre uma intervenção, em Fátima, de D. Manuel Clemente, actual bispo do Porto, em que ele critica a Igreja velha e distante da realidade circundante. É um documento importante, pela análise (embora cuidadosa) do estado em que a instituição se encontra. O bispo não aborda, apenas, os aspectos "sombrios", mas alude, igualmente, às "luzes de esperança" que se antevêem, e refere o papel da mulher como factor aglutinante. Claro que a reflexão é uma abordagem cautelosa e prudente, embora não deixe de ser vigilante, e reveladora das preocupações do bispo.
Conheço D. Manuel Clemente desde que foi reitor do seminário dos Olivais. Há muitos anos, um programa de televisão, na SIC, conduzido por Margarida Marante, despertou a minha curiosidade sobre aquele homem, que se encontrava com José Saramago a fim de com ele discutir problemas imanentes da política, da religião e da literatura. Foi um grande momento cultural e moral. A abertura de espírito demonstrada pelo padre fazia paralelo com a grandeza cultural e ética de Saramago. O meu ateísmo não me impediu de escrever uma carta a Manuel Clemente, correspondida com prontidão e elegância. Enviei-lhe livros meus, remeteu-me opiniões marcadas pela inteligência e pela sabedoria.
Mais tarde, desloquei-me ao Porto, para debater, com o já então bispo da diocese, as questões da fome e da exclusão. A sessão, apinhada de gente, era patrocinada pelo Montepio Geral, numa iniciativa muito meritória, que suscitou numerosas intervenções do público. Eu defendi a tese da necessidade de mudar de paradigma económico. Ele insistiu na importância da solidariedade, desenvolvendo as suas ideias na base da doutrina social da Igreja. A certa altura falou-se no celibato dos padres. O bispo, acentuando o sorridente habitual no rosto, afirmou que tudo tinha o seu tempo, e que haveria tempo para tudo. Não era uma resposta esquiva ou habilidosa. No fundo era uma analogia do que, na Bíblia, ensinava o Eclesiastes.
Esta recente interposição de Manuel Clemente em Fátima demonstra que, lentamente embora, com resistências poderosas e reservas insidiosas, a Igreja dos homens vai dando conta das questões essenciais. A perda de vocações poderá ser um aviso e uma advertência para a hierarquia. Porém, os sinais de alerta representam, na minha opinião, o avanço do movimento das ideias. Mesmo numa Igreja conservadora, retrógrada e, até, amiúde, reaccionária, como a portuguesa.
b.bastos@netcabo.pt
Ferreira Gomes foi como que uma luz para os chamados "católicos progressistas", que reunia os "desenganados do catolicismo" numa procura de outros caminhos para uma instituição ancilosada e cúmplice do salazarismo. É importante ler o prefácio de D. António Ferreira Gomes à terceira edição de "Contos Exemplares", de Sophia de Melo Breyner Andersen. Nesse texto percebe-se a dimensão do prelado e a grandeza do homem.
Anteontem li, no "Diário de Notícias", uma desenvolvida notícia sobre uma intervenção, em Fátima, de D. Manuel Clemente, actual bispo do Porto, em que ele critica a Igreja velha e distante da realidade circundante. É um documento importante, pela análise (embora cuidadosa) do estado em que a instituição se encontra. O bispo não aborda, apenas, os aspectos "sombrios", mas alude, igualmente, às "luzes de esperança" que se antevêem, e refere o papel da mulher como factor aglutinante. Claro que a reflexão é uma abordagem cautelosa e prudente, embora não deixe de ser vigilante, e reveladora das preocupações do bispo.
Conheço D. Manuel Clemente desde que foi reitor do seminário dos Olivais. Há muitos anos, um programa de televisão, na SIC, conduzido por Margarida Marante, despertou a minha curiosidade sobre aquele homem, que se encontrava com José Saramago a fim de com ele discutir problemas imanentes da política, da religião e da literatura. Foi um grande momento cultural e moral. A abertura de espírito demonstrada pelo padre fazia paralelo com a grandeza cultural e ética de Saramago. O meu ateísmo não me impediu de escrever uma carta a Manuel Clemente, correspondida com prontidão e elegância. Enviei-lhe livros meus, remeteu-me opiniões marcadas pela inteligência e pela sabedoria.
Mais tarde, desloquei-me ao Porto, para debater, com o já então bispo da diocese, as questões da fome e da exclusão. A sessão, apinhada de gente, era patrocinada pelo Montepio Geral, numa iniciativa muito meritória, que suscitou numerosas intervenções do público. Eu defendi a tese da necessidade de mudar de paradigma económico. Ele insistiu na importância da solidariedade, desenvolvendo as suas ideias na base da doutrina social da Igreja. A certa altura falou-se no celibato dos padres. O bispo, acentuando o sorridente habitual no rosto, afirmou que tudo tinha o seu tempo, e que haveria tempo para tudo. Não era uma resposta esquiva ou habilidosa. No fundo era uma analogia do que, na Bíblia, ensinava o Eclesiastes.
Esta recente interposição de Manuel Clemente em Fátima demonstra que, lentamente embora, com resistências poderosas e reservas insidiosas, a Igreja dos homens vai dando conta das questões essenciais. A perda de vocações poderá ser um aviso e uma advertência para a hierarquia. Porém, os sinais de alerta representam, na minha opinião, o avanço do movimento das ideias. Mesmo numa Igreja conservadora, retrógrada e, até, amiúde, reaccionária, como a portuguesa.
b.bastos@netcabo.pt
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