Opinião
A profundidade estratégica da Turquia
A adesão à União Europeia deixou de ser o objectivo estratégico reiterado dos islamitas do "Partido da Justiça e Desenvolvimento" e a Turquia firmou na última década uma política externa cada vez mais independente.
Recep Erdogan, eleito para um terceiro mandato consecutivo sem conseguir a maioria de dois terços que lhe permitiria impor uma revisão constitucional de pendor presidencialista, conta com opções diplomáticas diversificadas.
A NATO e a União Europeia foram as duas vertentes principais dos governos civis ou militares de Ancara desde a Guerra Fria e os anos sessenta, respectivamente, mas as mudanças geopolíticas do final do século abriram novas perspectivas ao estado laico herdeiro do Império Otomano.
Apostas em todos os azimutes
O presidente conservador Türgüt Özal foi o primeiro a aproveitar as oportunidades criadas pelo colapso da União Soviética e a partir de 1991 promoveu programas de cooperação orientados para os novos estados turcófonos da Ásia Central e o Arzebeijão.
Na vertente europeia, oito anos depois Bruxelas reconheceria a Turquia como país candidato à adesão, dando novo alento às aspirações que Ancara alentava desde o "Acordo de Associação" de 1963, mas só em Outubro de 2005 teriam início as negociações com a União Europeia.
Numa primeira fase o objectivo de integração na UE facilitou o processo de desmantelamento do poder de tutela dos militares, a autonomização do poder judicial e ampliação de direitos de minorias, ao mesmo tempo que continha receios sobre riscos de islamização.
As vantagens políticas das negociações com Bruxelas foram bem aproveitadas por Recep Erdogan desde que passou a chefiar o governo no início de 2003, mas, progressivamente, a declarada oposição de estados como a França, Alemanha ou Áustria a uma eventual adesão turca e o impasse no conflito do Chipre reduziram a importância da opção europeia.
A adesão da Turquia à União Europeia passou de objectivo estratégico fundamental para mero desiderato vantajoso, mas não essencial.
A expansão económica dos anos Erdogan passou, entretanto, pela conquista de novos mercados, designadamente no leste europeu, na Rússia e no Médio Oriente, ainda que em termos de captação de investimento estrangeiro e trocas comerciais a União Europeia seja o principal parceiro da Turquia.
A presença de cerca de 3,5 milhões de pessoas de origem turca na Alemanha, a alternativa que a Turquia representa como via de abastecimento dos recursos energéticos da Ásia Central e do Cáucaso, o papel de Ancara na estabilização dos Balcãs e na resolução do diferendo cipriota garantem um peso muito próprio a Ancara nos cálculos diplomáticos europeus.
Enveredar por uma política hostil à UE e aos seus principais estados não é do interesse da Turquia, mas no mero balanço de trocas económicas Ancara consegue sustentar uma relação com os 27 sem cedências de maior apesar dos prejuízos causados pelo conflito de Chipre.
A autonomia turca
O reverso é, contudo, um maior desprendimento da Turquia em relação à UE e também face à NATO dado que ao contrário do que sucedia até aos anos 90 existem agora outras opções de política externa no mínimo complementares das anteriores alianças e parcerias preferenciais.
A recusa do governo de Erdogan em permitir em 2003 a abertura de uma frente para ofensiva terrestre no norte do Iraque contra Saddam Hussein representou a primeira divergência estratégica de monta entre a Turquia e aos Estados Unidos.
Ancara permitiria a Washington utilizar bases áreas na Turquia para operações no Iraque, mantendo, também, a participação no esforço de guerra no Afeganistão, mas as coincidências de interesses entre os dois aliados tinham-se reduzido significativamente.
O desaparecimento de estados clientes da URSS propiciara uma política externa turca no Médio Oriente independente dos interesses de Washington e simultaneamente separa os fundamentos da aliança com Israel.
O acordo com Damasco no final dos anos 90 para contenção de separatistas curdos no sudeste da Turquia, a par de posteriores entendimentos para aproveitamento dos recursos do Eufrates e a criação de uma zona de comércio livre, foi um exemplo claro da autonomização da política externa de Ancara.
Para além do apoio ideológico dos islamitas turcos às facções palestinianas em confronto com Israel os recentes desentendimentos entre Ancara e Telavive reflectem, por outro lado, o irrevogável distanciamento da Turquia em relação a um velho aliado com que contara na oposição a estados árabes clientes da URSS.
Zero problemas e muitas alternativas
A política de "profundidade estratégica", teorizada pelo actual chefe da diplomacia de Ancara, Ahmet Davutoglu, justifica potencializar contactos com antigos domínios imperiais otomanos e, ainda, com rivais históricos como é o caso de Moscovo.
Face ao Irão a Turquia visa, também, manter abertas as vias de diálogo com um importante fornecedor de gás natural e parceiro comercial e recuperar um exemplo de equilíbrio de interesses.
Em 2010 certa inexperiência e ingenuidade diplomática marcaram um mal concebido plano de mediação da Turquia e do Brasil no intratável diferendo sobre o programa militar nuclear clandestino do Irão.
A investida de Ancara, significativamente associada a Brasília, em áreas da diplomacia geralmente reservadas a grandes potências assinalou também, no entanto, a clara tendência da Turquia de procura de novas parcerias independentes dos compromissos tradicionais de alianças.
Uma partilha de zonas de influência, em alguns casos sobrepostas por via dos interesses iranianos no Líbano, Iraque ou Afeganistão, é, por exemplo, concebível em Ancara à imagem do Tratado de Zuhab/Kasr`i Sirin, de 1639, entre os impérios Safavida e Otomano que até ao final da I Guerra Mundial assegurou a paz entre persas e turcos.
O crescimento económico da última década criou condições de independência para Ancara prosseguir uma política de "zero problemas" com os estados vizinhos e de projecção alargada de interesses.
A União Europeia por maior que seja a sua importância para a Turquia é, tal como a NATO, apenas um dos parceiros possíveis de Ancara na defesa de interesses estratégicos nacionais cada vez mais latos.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira
A NATO e a União Europeia foram as duas vertentes principais dos governos civis ou militares de Ancara desde a Guerra Fria e os anos sessenta, respectivamente, mas as mudanças geopolíticas do final do século abriram novas perspectivas ao estado laico herdeiro do Império Otomano.
O presidente conservador Türgüt Özal foi o primeiro a aproveitar as oportunidades criadas pelo colapso da União Soviética e a partir de 1991 promoveu programas de cooperação orientados para os novos estados turcófonos da Ásia Central e o Arzebeijão.
Na vertente europeia, oito anos depois Bruxelas reconheceria a Turquia como país candidato à adesão, dando novo alento às aspirações que Ancara alentava desde o "Acordo de Associação" de 1963, mas só em Outubro de 2005 teriam início as negociações com a União Europeia.
Numa primeira fase o objectivo de integração na UE facilitou o processo de desmantelamento do poder de tutela dos militares, a autonomização do poder judicial e ampliação de direitos de minorias, ao mesmo tempo que continha receios sobre riscos de islamização.
As vantagens políticas das negociações com Bruxelas foram bem aproveitadas por Recep Erdogan desde que passou a chefiar o governo no início de 2003, mas, progressivamente, a declarada oposição de estados como a França, Alemanha ou Áustria a uma eventual adesão turca e o impasse no conflito do Chipre reduziram a importância da opção europeia.
A adesão da Turquia à União Europeia passou de objectivo estratégico fundamental para mero desiderato vantajoso, mas não essencial.
A expansão económica dos anos Erdogan passou, entretanto, pela conquista de novos mercados, designadamente no leste europeu, na Rússia e no Médio Oriente, ainda que em termos de captação de investimento estrangeiro e trocas comerciais a União Europeia seja o principal parceiro da Turquia.
A presença de cerca de 3,5 milhões de pessoas de origem turca na Alemanha, a alternativa que a Turquia representa como via de abastecimento dos recursos energéticos da Ásia Central e do Cáucaso, o papel de Ancara na estabilização dos Balcãs e na resolução do diferendo cipriota garantem um peso muito próprio a Ancara nos cálculos diplomáticos europeus.
Enveredar por uma política hostil à UE e aos seus principais estados não é do interesse da Turquia, mas no mero balanço de trocas económicas Ancara consegue sustentar uma relação com os 27 sem cedências de maior apesar dos prejuízos causados pelo conflito de Chipre.
A autonomia turca
O reverso é, contudo, um maior desprendimento da Turquia em relação à UE e também face à NATO dado que ao contrário do que sucedia até aos anos 90 existem agora outras opções de política externa no mínimo complementares das anteriores alianças e parcerias preferenciais.
A recusa do governo de Erdogan em permitir em 2003 a abertura de uma frente para ofensiva terrestre no norte do Iraque contra Saddam Hussein representou a primeira divergência estratégica de monta entre a Turquia e aos Estados Unidos.
Ancara permitiria a Washington utilizar bases áreas na Turquia para operações no Iraque, mantendo, também, a participação no esforço de guerra no Afeganistão, mas as coincidências de interesses entre os dois aliados tinham-se reduzido significativamente.
O desaparecimento de estados clientes da URSS propiciara uma política externa turca no Médio Oriente independente dos interesses de Washington e simultaneamente separa os fundamentos da aliança com Israel.
O acordo com Damasco no final dos anos 90 para contenção de separatistas curdos no sudeste da Turquia, a par de posteriores entendimentos para aproveitamento dos recursos do Eufrates e a criação de uma zona de comércio livre, foi um exemplo claro da autonomização da política externa de Ancara.
Para além do apoio ideológico dos islamitas turcos às facções palestinianas em confronto com Israel os recentes desentendimentos entre Ancara e Telavive reflectem, por outro lado, o irrevogável distanciamento da Turquia em relação a um velho aliado com que contara na oposição a estados árabes clientes da URSS.
Zero problemas e muitas alternativas
A política de "profundidade estratégica", teorizada pelo actual chefe da diplomacia de Ancara, Ahmet Davutoglu, justifica potencializar contactos com antigos domínios imperiais otomanos e, ainda, com rivais históricos como é o caso de Moscovo.
Face ao Irão a Turquia visa, também, manter abertas as vias de diálogo com um importante fornecedor de gás natural e parceiro comercial e recuperar um exemplo de equilíbrio de interesses.
Em 2010 certa inexperiência e ingenuidade diplomática marcaram um mal concebido plano de mediação da Turquia e do Brasil no intratável diferendo sobre o programa militar nuclear clandestino do Irão.
A investida de Ancara, significativamente associada a Brasília, em áreas da diplomacia geralmente reservadas a grandes potências assinalou também, no entanto, a clara tendência da Turquia de procura de novas parcerias independentes dos compromissos tradicionais de alianças.
Uma partilha de zonas de influência, em alguns casos sobrepostas por via dos interesses iranianos no Líbano, Iraque ou Afeganistão, é, por exemplo, concebível em Ancara à imagem do Tratado de Zuhab/Kasr`i Sirin, de 1639, entre os impérios Safavida e Otomano que até ao final da I Guerra Mundial assegurou a paz entre persas e turcos.
O crescimento económico da última década criou condições de independência para Ancara prosseguir uma política de "zero problemas" com os estados vizinhos e de projecção alargada de interesses.
A União Europeia por maior que seja a sua importância para a Turquia é, tal como a NATO, apenas um dos parceiros possíveis de Ancara na defesa de interesses estratégicos nacionais cada vez mais latos.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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