Opinião
A melancólica cegada
Este contubérnio a que chamam Governo está deitado num leito de cardos. Rara é a hora em que não salta uma inconveniência, um disparate, uma precipitação, uma inépcia. Não há ministro que se safe dos arranhões.
Um festim para a Imprensa, apesar dos evidentes controlos, das manifestas manipulações e da alegre ignorância de muitos «jornalistas». A cerimónia da posse foi o que se viu: Santana com manifestos sintomas de alexia, o que não surpreende - como se sabe, o homem não é muito dado à leitura, e esse pequeno contratempo surge como facto risível quando deveria merecer terna compaixão. Paulo Portas, pobre Portas, tão Massimo Dutti, tão Gouvarinho, ficou espavorido, quando soube, ali mesmo, que também era ministro do Mar, adicionado a outras melancólicas funções.
A triste farsa resvalou em melancólica cegada quando foi tornado público aquilo que alguns de nós já sabíamos: não há sequer um membro desta bufonaria que, directa ou indirectamente, não esteja relacionado com grandes grupos financeiros e com interesses antagónicos a funções governamentais. Não é uma fragilidade que faça sorrir; é um escândalo de tal monta que até «companheiros» do PSD já começaram a expor, na praça popular, os seus veementes desacordos.
Coincidências - disseram alguns preopinantes estipendiados. Porém, certas «coincidências» não representam quaisquer fronteiras estabelecidas pelo acaso, e permitem uma aceleração do aviltamento do Executivo presidido por Santana Lopes. Esta gente é a direita da Direita, no que a Direita possui de mais retrógrado, de mais irracional e de mais abjecto. O patronato conseguiu fabricar um duplo de si mesmo e dispõe de poderes incomensuráveis nos centros de decisão.
Não é preciso raciocinar através do cálculo de probabilidades para se perceber que se avizinham graves ofensivas contra os dispositivos sociais e, decorrentemente, grande agitação popular e cívica. Quando Bagão Félix fala em «modernizar» as estruturas, há que estar de atalaia: o rasto de sofrimento, de dor, de miséria que deixou no País não dá lugar a dúvidas. E alguns dos bispos portugueses, como D. Manuel Martins ou D. Januário Torgal Ferreira (e, levemente embora, o próprio D. José Policarpo) não ocultaram as apreensões que lhes suscitou o empreendimento de Félix, quando ministro de Barroso. A ofensiva vai continuar. A contra-ofensiva não tardará. «Já a espero», disse Félix, sorrindo, com uma ironia velada de falsa doçura.
Há dias, numa admirável entrevista, na SIC-Notícias, o dr. Artur Santos Silva, com paciente benevolência, explicou a Maria João Avillez o que era «isto» em Portugal. Santos Silva, gestor, empresário como há poucos, raros, incomuns, no nosso pobre país, é um leitor omnívoro, um homem de vasta cultura, um católico que entende e pratica a doutrina Social da Igreja. Entre outras informações disse que oitenta por cento dos patrões portugueses não possui os nove anos de escolaridade, e discreteou, tanto quanto lhe era consentido, sobre as deficiências sociais, culturais e morais às quais os governos não dão resposta. Maria João, simpática, displicente, passou por cima do facto perturbador que, só por si, incitaria à explanação e ao desenvolvimento de uma problemática vital.
Com o Pacheco Pereira, a conversa foi outra. O homem acumulou treino, adorna-se de sabedoria, é, pela inversa gramsciana, o «intelectual orgânico» da Direita, não está hipotecado à delicadeza dos salões, onde se exala a alma e o verbo, e não consegue dissimular o enfado que lhe causam a ignorância atrevida e a mediocridade impante. Quando Maria João Avillez pretendia interrompê-lo, servindo-se do seu habitual «Já lá vamos», o Pacheco, com a nevralgia da soberba, nem sequer a ouvia, e disse o que muito bem o interessou dizer. Ressaltou, porém, do discurso, além dos recados subjacentes, o ressentimento que o imobiliza, o rancor que define amargura, despeito, inveja; e, também, a megalomania à qual Maria João chamou, modestamente, «vaidade».
Estes episódios públicos, e outros que não são suficientemente explicados, fornecem-nos uma ideia do que está para acontecer. Não vamos conviver com a ética da bondade, da utilidade e da missão necessária. O turbilhão é consequência da barafunda em que nos meteu o Presidente da República. Como já se viu, ele não vai acautelar coisa alguma. Nós é que temos de nos precaver.