Opinião
A interdependência das crises
Os estrategas políticos, académicos e jornalistas normalmente debatem a crise financeira global e as guerras no Afeganistão e no Iraque como se, de alguma forma, existissem paralelamente. Mas as actuais crises financeira e de política externa estão, de...
Os estrategas políticos, académicos e jornalistas normalmente debatem a crise financeira global e as guerras no Afeganistão e no Iraque como se, de alguma forma, existissem paralelamente. Mas as actuais crises financeira e de política externa estão, de facto, interligadas. Com efeito, a forma como o mundo tentou resolver a crise financeira dá-nos perspectivas interessantes sobre a maneira como a crise em matéria de política externa deveria ser abordada.
A actual crise de política externa vai muito além do Afeganistão e do Iraque. O registo de países que saem de uma situação de conflito para uma paz frágil, através de intervenção militar ou de uma solução negociada é deplorável: praticamente metade deles regressam ao conflito, levando a uma maior tragédia humana e a um elevado número de refugiados. Além disso, os estados em derrapagem são uma incubadora do terrorismo, tráfico de droga e de pessoas, pirataria e outras actividades ilícitas. Da metade que se mantém em paz, a grande maioria acaba por ficar extremamente dependente da ajuda externa - um modelo dificilmente sustentável no contexto da crise financeira global.
Estas duas crises criaram imenso sofrimento humano em todo o mundo: milhares de famílias perderam os seus entes queridos em guerras e a crise financeira levou os empregos, bases de sustento, património, pensões e sonhos das pessoas, ao mesmo tempo que deteriorou as condições orçamentais e ao nível do endividamento na maioria dos países industriais. Consequentemente, os contribuintes dos países doadores estão a exigir uma maior transparência e responsabilidade na forma como o seu dinheiro é gasto, tanto internamente como no estrangeiro - e têm razão para o fazer.
Existem ligações notáveis entre ambas as crises. A guerra no Iraque contribuiu, em parte, para o aumento dos preços do petróleo, de 35 dólares por barril em 2003 para 147 em 2008. Esta escalada dos preços pressionou empresas e consumidores e foi um factor de grande relevância no aumento do preço dos alimentos a nível mundial. À medida que os preços subiam e as pressões recessivas aumentavam, muitas famílias deixaram de poder pagar os seus empréstimos à habitação. O sector do "subprime" (empréstimos de alto risco, dado o fraco historial creditício dos clientes) nos Estados Unidos foi penalizado e a crise financeira disseminou-se a partir daí.
Ambas as crises exigem medidas políticas fora do âmbito normal. São necessárias políticas de emergência de curto prazo destinadas a combater o elevado desemprego, as execuções hipotecárias, as falências de empresas, e também a fome, as doenças e inúmeros outros males. As políticas de emergência ou humanitárias poderão melhorar o consumo de base no curto prazo, mas poderão também desencorajar o investimento, aumentar a inflação e reduzir as perspectivas para a economia no longo prazo. Assim sendo, essas políticas devem ser descontinuadas logo que possível.
Recuperar de ambas as crises será algo que vai requerer uma reconstrução económica eficaz para se criarem empregos. Além da reestruturação do sector financeiro, os programas de recuperação dos EUA, Reino Unido e outros países industriais fortemente atingidos pela crise financeira devem visar também uma ajuda aos proprietários de casas e de empresas, bem como a criação de postos de trabalho através de projectos de infraestruturas, tecnologias de energia limpa e melhorias ao nível dos cuidados de saúde e do ensino.
No Afeganistão e no Iraque, a reconstrução deve incluir não só a reabilitação de serviços e infraestruturas, mas também - o que constitui um maior desafio - a criação de uma estrutura macroeconómica, jurídica e regulatória para que as medidas tomadas sejam eficazes. Para evitar a continuação do conflito e da dependência em matéria de ajudas, o principal foco do compromisso de ajuda internacional deveria ser a reactivação das pequenas empresas e a promoção de empresas recém-criadas em vários sectores, de forma a serem criados ambientes económicos viáveis que permitam às pessoas ganhar a vida de forma legal e decente.
Apesar de todos os pontos comuns entre estas crises, tem havido um forte contraste nas abordagens destinadas a solucioná-las. Ao passo que os programas nas economias industriais e emergentes que visam lidar com a crise financeira têm sido amplamente debatidos a nível nacional e internacional, o debate acerca do Afeganistão e do Iraque tem estado estreitamente focalizado em questões militares e de segurança, sem ser ponderada a necessidade de um esforço de relevo para uma reconstrução efectiva destes países.
Curiosamente, enquanto a maioria dos norte-americanos está perfeitamente consciente do pacote de 700 mil milhões de dólares para reestruturar a banca e do pacote de estímulo económico no valor de 787 mil milhões de dólares, tem sido prestada muito menos atenção aos cerca de um bilião de dólares gastos nas guerras do Afeganistão e do Iraque. Muitos assumem que o custo é tão elevado porque a reconstrução é dispendiosa. Mas apenas 6% deste montante foi alocado à reconstrução e a outros programas de ajuda. O restante foi atribuído ao Departamento norte-americano da Defesa como um suplemento ao seu orçamento anual, que tem estado compreendido entre os 500 e os 650 mil milhões de dólares nos últimos anos.
Os líderes mundiais deveriam reconhecer que um maior investimento na reconstrução, de par com uma estratégia abrangente e bem equilibrada para assegurar a responsabilidade e políticas adequadas de criação de empregos, poderia ter evitado estes avultados gastos militares, tanto no Iraque desde 2006 como no Afeganistão desde que o governo taliban foi derrubado em 2001.
Tal como os líderes mundiais lideraram o debate global sobre as políticas necessárias para solucionar a crise financeira, devem também dar início a um debate alargado sobre o envolvimento futuro da comunidade internacional no Afeganistão, Iraque e outros países devastados pela guerra, onde são precisas melhores condições de vida para que as populações locais sejam parte activa do processo de paz. A comunidade internacional deveria reconhecer que as operações militares, de segurança e de manutenção da paz são dispendiosas e que não serão bem sucedidas se não houver novas estratégias inovadoras e integradas que visem a reconstrução económica.
Graciana del Castillo é investigadora no Centro sobre Capitalismo e Sociedade da Universidade de Columbia e autora de "Rebuilding War-Torn States".
A actual crise de política externa vai muito além do Afeganistão e do Iraque. O registo de países que saem de uma situação de conflito para uma paz frágil, através de intervenção militar ou de uma solução negociada é deplorável: praticamente metade deles regressam ao conflito, levando a uma maior tragédia humana e a um elevado número de refugiados. Além disso, os estados em derrapagem são uma incubadora do terrorismo, tráfico de droga e de pessoas, pirataria e outras actividades ilícitas. Da metade que se mantém em paz, a grande maioria acaba por ficar extremamente dependente da ajuda externa - um modelo dificilmente sustentável no contexto da crise financeira global.
Existem ligações notáveis entre ambas as crises. A guerra no Iraque contribuiu, em parte, para o aumento dos preços do petróleo, de 35 dólares por barril em 2003 para 147 em 2008. Esta escalada dos preços pressionou empresas e consumidores e foi um factor de grande relevância no aumento do preço dos alimentos a nível mundial. À medida que os preços subiam e as pressões recessivas aumentavam, muitas famílias deixaram de poder pagar os seus empréstimos à habitação. O sector do "subprime" (empréstimos de alto risco, dado o fraco historial creditício dos clientes) nos Estados Unidos foi penalizado e a crise financeira disseminou-se a partir daí.
Ambas as crises exigem medidas políticas fora do âmbito normal. São necessárias políticas de emergência de curto prazo destinadas a combater o elevado desemprego, as execuções hipotecárias, as falências de empresas, e também a fome, as doenças e inúmeros outros males. As políticas de emergência ou humanitárias poderão melhorar o consumo de base no curto prazo, mas poderão também desencorajar o investimento, aumentar a inflação e reduzir as perspectivas para a economia no longo prazo. Assim sendo, essas políticas devem ser descontinuadas logo que possível.
Recuperar de ambas as crises será algo que vai requerer uma reconstrução económica eficaz para se criarem empregos. Além da reestruturação do sector financeiro, os programas de recuperação dos EUA, Reino Unido e outros países industriais fortemente atingidos pela crise financeira devem visar também uma ajuda aos proprietários de casas e de empresas, bem como a criação de postos de trabalho através de projectos de infraestruturas, tecnologias de energia limpa e melhorias ao nível dos cuidados de saúde e do ensino.
No Afeganistão e no Iraque, a reconstrução deve incluir não só a reabilitação de serviços e infraestruturas, mas também - o que constitui um maior desafio - a criação de uma estrutura macroeconómica, jurídica e regulatória para que as medidas tomadas sejam eficazes. Para evitar a continuação do conflito e da dependência em matéria de ajudas, o principal foco do compromisso de ajuda internacional deveria ser a reactivação das pequenas empresas e a promoção de empresas recém-criadas em vários sectores, de forma a serem criados ambientes económicos viáveis que permitam às pessoas ganhar a vida de forma legal e decente.
Apesar de todos os pontos comuns entre estas crises, tem havido um forte contraste nas abordagens destinadas a solucioná-las. Ao passo que os programas nas economias industriais e emergentes que visam lidar com a crise financeira têm sido amplamente debatidos a nível nacional e internacional, o debate acerca do Afeganistão e do Iraque tem estado estreitamente focalizado em questões militares e de segurança, sem ser ponderada a necessidade de um esforço de relevo para uma reconstrução efectiva destes países.
Curiosamente, enquanto a maioria dos norte-americanos está perfeitamente consciente do pacote de 700 mil milhões de dólares para reestruturar a banca e do pacote de estímulo económico no valor de 787 mil milhões de dólares, tem sido prestada muito menos atenção aos cerca de um bilião de dólares gastos nas guerras do Afeganistão e do Iraque. Muitos assumem que o custo é tão elevado porque a reconstrução é dispendiosa. Mas apenas 6% deste montante foi alocado à reconstrução e a outros programas de ajuda. O restante foi atribuído ao Departamento norte-americano da Defesa como um suplemento ao seu orçamento anual, que tem estado compreendido entre os 500 e os 650 mil milhões de dólares nos últimos anos.
Os líderes mundiais deveriam reconhecer que um maior investimento na reconstrução, de par com uma estratégia abrangente e bem equilibrada para assegurar a responsabilidade e políticas adequadas de criação de empregos, poderia ter evitado estes avultados gastos militares, tanto no Iraque desde 2006 como no Afeganistão desde que o governo taliban foi derrubado em 2001.
Tal como os líderes mundiais lideraram o debate global sobre as políticas necessárias para solucionar a crise financeira, devem também dar início a um debate alargado sobre o envolvimento futuro da comunidade internacional no Afeganistão, Iraque e outros países devastados pela guerra, onde são precisas melhores condições de vida para que as populações locais sejam parte activa do processo de paz. A comunidade internacional deveria reconhecer que as operações militares, de segurança e de manutenção da paz são dispendiosas e que não serão bem sucedidas se não houver novas estratégias inovadoras e integradas que visem a reconstrução económica.
Graciana del Castillo é investigadora no Centro sobre Capitalismo e Sociedade da Universidade de Columbia e autora de "Rebuilding War-Torn States".
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21.07.2009