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11 de Março de 2005 às 13:59

A Cidade da Roupa Branca

(parte II – descrição da cidade)

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O espírito de João voltava agora a centrar-se naquela que seria a cidade dos seus sonhos. Já pensara e repensara a sua arquitectura, não tendo agora quaisquer dúvidas quanto aos traços mais profundos que a caracterizariam.
João fecha os olhos e observa-a mentalmente, percorrendo cada um dos quatros bairros principais...

Logo à entrada situa-se um bairro menos bonito, de dormitório, marcado pelo desenvolvimento do mais vasto conjunto de actividades ilícitas. A polícia passa aí os seus dias e os juizes cumprem as estatísticas de mandar pessoal para a cadeia utilizando os desgraçados que por ali vão sendo apanhados. É um sítio bom para advogados de barra e seus constituintes, acolhendo todo o tipo de gente considerada barra pesada. O bairro chama-se, por isso, Bairro dos Desgraçados da Barra (BDB).

No outro extremo da cidade, ligado por uma grande ponte assente em pilares de betão, por onde fluem grandes carregamentos de sacos de notas (habitualmente azuis), situa-se uma zona anelar, subdividida em dois bairros - o Bairro dos Carregadores de Bilhetes (BCB) e o Bairro dos Patos Bravos (BPB) – ambos envolvendo uma ilha situada no centro e conhecida por Bairro do Fora de Bordo (BFB).

O BCB está dividido em 3 zonas: uma de comércio alimentar (afinal de contas, esta coisa de andar com sacos às costas abre o apetite), uma de jogo e, finalmente, uma financeira.

Na zona de comércio alimentar imperam os restaurantes (com muitas pizarias) e cafés – escoadouros de moedas e notas por excelência. Ali pode pagar-se em cash, dizer-se que os desperdícios são grandes e simular uma enorme clientela – tudo desculpas boas na hora de contar estórias aos senhores da Inspecção Geral das Actividades Económicas: «pois é, entram aqui milhares de clientes por ano» - mesmo que o botequim não tenha mais do que três mesas para o pessoal se sentar – «só que os custos também são muito elevados, porque há muitos roubos e muitos produtos que se estragam». Fica assim justificado o carrão à porta: muita facturação, que dissimula a entrada do dinheiro sujo, e muito desperdício, que dissimula a sua colocação em circulação (custos que ajudam, também, a pagar menos ao Fisco).

A zona de jogo é dominada maioritariamente por casinos – onde se entra com notas sujas, se compram fichas, se ganha e perde, se trocam fichas e se sai com notas (pré)lavadas – e casas de lotarias e totolotos – onde se compram bilhetes premiados com dinheiro sujo, trocando-os, de seguida, por dinheiro (pré)lavado.

Finalmente, há uma zona de bancos e outras instituições financeiras. É aqui que o dinheiro sujo (ainda que pré-lavado) normalmente desagua, contando com a cumplicidade daqueles que se prontificam para depositá-lo (muitas vezes «às fatias») e dos que o recebem sem fazer perguntas ou proceder a registos.

A esta zona retornam ainda grandes somas de dinheiro já lavado, proveniente de empréstimos garantidos por depósitos em bancos do BFB (e sobre os quais até se pagam juros que são descontados para efeitos fiscais), pronto a ser legitimamente injectado no sistema.

No BFB, grande receptor dos dinheiros provenientes do BCB, só se avistam bancos e «escritórios». Diz-se que os primeiros vivem de transferências electrónicas - que apagam pegadas à velocidade da banda larga – e de empréstimos, enquanto que os segundos, onde é raro ver-se grandes movimentos de pessoas, albergam sociedades com nomes muito esquisitos. Ali ninguém pergunta nada a ninguém; muito menos aos que aí actuam como brokers dando ordens de compra e venda de activos, em que comprador e vendedor são a mesma pessoa. Bairro esquisito este, onde tudo parece de faz-de-conta.

Finalmente, no BPB impera o comércio do luxo, incluindo, como dizia o legislador do tempo dos contos, «imóveis de valor de aquisição igual ou superior a 50 mil contos; automóveis ligeiros de passageiros de valor igual ou superior a 10 mil contos e motociclos de valor igual ou superior a 2 mil contos; barcos de recreio de valor igual ou superior a 5 mil contos e aeronaves de turismo». Naturalmente, há, ainda, lojas de alta costura, de antiguidades, de pedras e metais preciosos, bem como de obras de arte. É o bairro preferido dos leiloeiros.

O telefone toca novamente. João desperta dos seus pensamentos profundos e atende. Do outro lado, surge uma voz conhecida, que teima em conseguir os seus objectivos. João responde, perguntando - «5%? Onde é que nos encontramos?». Tinha acabado o seu dia de folga. O Chevrolet  ganha agora nova velocidade, expelindo um barulho rouco vibrante, rumo à Cidade da Roupa Branca...

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