Opinião
Do inimigo invisível à mão invisível: “final call” para mudar
Gostaria que na Europa se desenhasse um plano a implementar em 5-10 anos para uma conexão eficiente e limpa – possivelmente ferroviária – de grande qualidade em todo o espaço europeu.
O mundo inteiro anda já há meses a combater um vírus. Não há memória de uma ação concertada de confinamento e “lockdown” de atividade económica como aquela que estamos ainda a viver, quer pela sua extensão geográfica e setorial, quer pela sua duração. Todos os continentes, todos expectantes. Ainda não há sinais convincentes de descoberta de uma cura ou de uma vacina, mas, à medida que o número de novos casos e de pacientes em estado grave abranda, países como Portugal começam a aligeirar as medidas de distanciamento social, obrigatoriedade de teletrabalho e limite à circulação.
Quando escrevi, a 15 de abril, neste espaço, deixei uma nota de otimismo quanto à capacidade de recuperação e potencial de rapidez na retoma económica na Europa e no nosso país. Continuo a acreditar que isso é possível, até mesmo que isso vai acontecer. E este sentimento de rápido regresso ao passado recente deixa-me, simultaneamente, preocupada. Não que a pandemia, o estado de emergência e o estado de calamidade me agradem – de todo!, mas antes pela falta de capacidade de retirarmos um benefício que seja desta pandemia. Podíamos estar a pensar em retomar atividade para sermos diferentes e melhores do que éramos, mas cada dia que passa isso parece mais difícil. Estou a imaginar o arquear de sobrancelhas dos leitores, mas passo a explicar. Este é um momento crucial, porque é aquele último em que ainda temos a possibilidade – enquanto sociedade – de fazermos escolhas.
Temos comparado o vírus a um inimigo invisível e a pandemia a uma guerra a combater. Mas aquilo por que temos passado é diferente de uma economia de guerra. Porquê? Por um lado, podemos atender à origem da doença: de uma forma ou de outra tem a ver com a evolução dos tempos e com as alterações sofridas na biodiversidade do nosso habitat, que partilhamos com inúmeros seres vivos. Não se trata de um conflito armado entre “iguais”, como duas potências vizinhas que competem por recursos, mas sim um conflito entre duas entidades muito diferentes; deste ponto de vista, sim, é uma guerra. Mas, do ponto de vista económico, não vivemos uma paragem como a de uma guerra (nem como a da I Grande Guerra, à qual se somou a gripe espanhola). Porquê? Essencialmente por dois motivos: em primeiro lugar porque os decisores económicos – neste caso, o Estado e, sim, com poderes, responsabilidades e margem de atuação reforçados, como numa guerra – têm tido a capacidade de comandar a economia de forma que nada de essencial falte no que diz respeito a bens de consumo, como alimentação, por exemplo. Mas o que mais distingue o 1.º semestre de 2020 de uma guerra é a não destruição do capital em sentido mais lato, digamos assim: não há destruição de edifícios, de equipamentos, de infraestruturas. O que é bom. Tenho a clara sensação de que a nossa capacidade produtiva e o capital humano qualificado não foram afetados. Ou seja, se quisermos, voltamos ao que era, apesar dos problemas de liquidez aqui e ali. Porém, a falta de sentimento de urgência em “reconstruir” e mudar é um problema sério.
Será triste voltarmos a cometer os erros que nos trouxeram até aqui. Se a situação acalmar, como aparenta ser o caso, a mão invisível da economia (ou, mais concretamente, o agregado da interação entre os vários seres humanos enquanto agentes económicos) vai conduzir-nos, quais formigas, a sairmos das nossas colónias e retomarmos os velhos percursos e estratégias. Neste momento, o mais grave será voltarmos a contribuir, de cara alegre, para as alterações climáticas que acabarão por comprometer a continuidade da vida humana na Terra.
A retoma económica precisa de uma outra visão – não pode ser invisível, como o vírus ou a mão – tem de ser mostrada a todos. Temos tímidos, mas importantes, sinais positivos na Comissão Europeia com a nova proposta do “Green Deal”, com o intuito de transformar os negócios e as economias para que sejam sustentáveis, não apenas em termos económico-financeiros mas também em termos ambientais; a proposta de Macron e Merkel deixa também essa ressalva. O financiamento do futuro tem de saber distinguir o que são projetos, negócios e setores que promovem continuidade da vida; e nas escolas de economia e gestão temos de o saber ensinar aos estudantes e às empresas – pela minha parte, estou pronta e a cumprir!
Seria muito importante que mãos visíveis e visionárias nos ajudassem a desenhar o plano de recuperação que esta guerra não tornou indispensável, porque não houve “destruição”, mas que faz tanta falta como uma vacina – pelas novas gerações. Um plano de reconversão das economias e das empresas, nos diversos setores, só vai funcionar com regras claras e incentivos adequados, para que não pague o justo pelo pecador. Está na hora! Um exemplo para ilustrar o que deveríamos estar a fazer pode ser o da mobilidade: o que eu gostaria que na Europa se desenhasse um plano a implementar em 5-10 anos para uma conexão eficiente e limpa – possivelmente ferroviária – de grande qualidade em todo o espaço europeu. Um projeto mobilizador, verdadeiramente europeu e internacional, um Plano Criativo de “Reconstrução” em troca de um “downsizing” planeado e lógico para ligações aéreas até certa milhagem. Com ligações adequadas a mobilidade limpa dentro das cidades, porque não? Temos de pensar melhor e fazer melhor. Porque o mundo já nos deu todos os sinais que podia dar. Está na hora de mudar. “Final call”. Quem vem a bordo? n
PS – No passado sábado 23 de maio, o ISEG celebrou o seu aniversário: 109 anos como se fossem 19! Com surpreendentes testemunhos de ex-alunos (só vendo!) e um concerto ao ar livre da muito inspirada Luísa Sobral, que foi transmitido live. Economia e Vida sem Arte também não fariam sentido algum. Vale a pena ver: