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Miguel Pina e Cunha - Professor 05 de Outubro de 2016 às 19:35

Camarada "big brother"

O acesso irrestrito à vida particular, na dimensão das contas bancárias ou outra qualquer, é um retrocesso, um passo atrás e mais um sinal de que vivemos tempos interessantes, no sentido chinês.

Um dos livros recomendáveis publicados este verão foi "O ruído do tempo", de Julian Barnes. Ficciona a vida do grande compositor soviético Dmitri Shostakovich. Caído em desgraça na sequência de uma crítica oficial negativa à sua música, o herói passa doravante a temer pela vida. Ao longo do livro, o leitor acompanha as angústias de um homem grande apequenado por um Estado que põe e dispõe das vidas dos seus cidadãos. Shostakovich acaba por passar ao lado dos finais trágicos de muitos seus compatriotas durante o tempo do terror estalinista, mas o que perdura é o medo permanente do cidadão face às instituições kafkianas do Estado.

 

A ideia de que a máquina institucional está acima dos cidadãos e que pode comandá-los conforme bem lhe apeteça constitui uma tentação irresistível para os regimes crentes nas maravilhosas potencialidades de um Estado mandatado para criar sociedades perfeitas. O regime maoista, agora recordado com saudade pelos neomaoistas chineses; o paraíso camponês de Pol Pot; a implodida Venezuela chavista: eis alguns exemplos mais ou menos malignos desta ideologia da intromissão.

 

Em Portugal, a crença mantém adeptos. O resultado é esquizofrénico. Por um lado, surgem tentativas de agilizar a burocracia estatal e de proporcionar melhor serviço. Em alguns casos, com resultados dignos e em grande medida graças ao profissionalismo e ao empenho, sempre sob fogo, dos funcionários mal geridos em regime de igualitarismo prático. Por outro lado, o aparelho de Estado é mobilizado para controlar cidadãos em quem manifestamente não confia.

 

Agora, sob pretexto do combate à evasão fiscal, pretende-se bisbilhotar as contas de cada um. Como é óbvio, o cidadão só pode desconfiar. Este argumento, em tempo de Panama Papers, daria vontade de rir se não fosse despropositado. Num Estado de Direito, o Estado não deve ter a possibilidade de fazer o que lhe apetece quando lhe apetece. O bom Estado controla os seus ímpetos. A vida dos cidadãos é particular e não matéria oficial. Em caso de suspeita e com o necessário processo legal, o Estado pode certamente investigar o que for necessário. Mas a abertura de precedentes deste tipo é uma devassa e um abuso.

 

As sucessivas tentativas de reforma do Estado têm sido insuficientes, mas têm procurado evoluir, na generalidade, na direção certa: a de criar um Estado mais ágil, menos burocrático, mais preparado para facilitar o progresso do país e a vida dos seus cidadãos. O acesso irrestrito à vida particular, na dimensão das contas bancárias ou outra qualquer, é um retrocesso, um passo atrás e mais um sinal de que vivemos tempos interessantes, no sentido chinês. A última coisa de que necessitamos é de um camarada "big brother" a garantir que os animais são todos iguais. Não queiramos a sorte de Shostakovich.    

 

Professor na Nova School of Business and Economics

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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