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Manuela Arcanjo - Economista 20 de Dezembro de 2018 às 19:20

Salvar vidas

Começo por lamentar, profundamente, as mortes decorrentes da queda do helicóptero do INEM. Foi um enorme privilégio tutelar uma entidade que tem por missão salvar vidas.

Tenho acompanhado com alguma consternação, mas sem grande surpresa, a crescente instabilidade social em muitos sectores da administração pública. Para já, colocam-se três questões relativas às opções e actuação do governo. A primeira, já aqui enunciada há muito, refere-se a algumas das medidas – não só do PS mas também resultantes dos acordos bilaterais – como sejam a reposição das 35 horas, com impacto forte na Saúde, e o descongelamento dos escalões remuneratórios. Não se avaliou ou não se quis admitir os efeitos destas opções.

 

A segunda questão refere-se à aparente ausência de coordenação dos processos negociais nos diversos ministérios. Ninguém teve consciência do que poderia vir a suceder num quadro de aparente sucesso financeiro? Ninguém se lembrou que as "boas regras" das negociações exigem que, não sendo possível financeiramente e, em alguns casos, nem sequer justo, responder a todas as reivindicações, se definam à partida as linhas vermelhas e que não se empatem os sindicatos com falsas cedências? Uma primeira conclusão emerge: erros do governo.

 

Seria impossível enumerar os sectores com greves realizadas e com pré-avisos. Mas há um caso especial que merece a minha atenção: os enfermeiros. Declaração de princípios: i) o direito à greve faz parte de um regime democrático; ii) sempre defendi, e pratiquei, negociações leais entre ambas as partes, mas com linhas vermelhas. Reconheço, no entanto, que passaram muitos anos e que muito mudou: os enfermeiros eram representados por dois sindicatos e não existia qualquer mistura de missões e discursos entre estes e respectiva Ordem. Não vejo qualquer problema na passagem a cinco sindicatos nem sequer na maior probabilidade de contestação. Mas diversas dúvidas são suscitadas pelo processo em curso: quem são os enfermeiros – sempre designados por "grupo" – que criaram o Movimento? Quem são as entidades que garantem a verba de 300 mil euros para financiamento da greve? Qual a razão para a bastonária ser uma das "caras" desta opção grevista?

 

Vamos agora ao modelo de greve escolhido: blocos cirúrgicos dos cinco maiores centros hospitalares. Claro, poucos enfermeiros podem contribuir para adiar largos milhares de cirurgias! E uma pergunta começou a surgir na minha cabeça: quantos doentes podem morrer? Sim, sem alarmismo, é esta a grande questão. Com a hipocrisia e cobardia habituais, ninguém assumiu este perigo ou facto. Apenas a bastonária da OE explicou, num canal televisivo, que morrem doentes no funcionamento normal dos hospitais por falta de enfermeiros! Se assim é, então seria um motivo para uma contestação da classe. Mais, seria razão suficiente para que o governo exigisse explicações à bastonária.

 

Em ambiente de falsas "vacas gordas" e com um discurso inicial que não parou a expectativa de todos recuperarem tudo e mais umas coisinhas, um governo minoritário enfrenta um processo reivindicativo pré-eleitoral que não vai parar. Mas existem diferenças abissais nos custos das greves de diferentes grupos: os alunos podem ter exames não realizados, a cobrança de impostos pode ser atrasada, podem surgir mais motins nas prisões. Mas nos hospitais, este tipo de greve pode fazer a diferença entre salvar vidas ou deixar morrer.

 

A nova ministra da Saúde terá usado uma adjectivação politicamente incorrecta e foi obrigada a apresentar um pedido de desculpa num telefonema que se tornou público no dia seguinte. Claro que não lhe passou pela cabeça – nem lhe teria sido permitido – usar um instrumento equivalente ao impacto da greve: sim, a requisição civil. Com o meu maior respeito pelos enfermeiros e por todos os restantes profissionais da Saúde.


Professora universitária (ISEG) e investigadora. Economista.

 

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