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Manuela Arcanjo - Economista 25 de Outubro de 2018 às 19:24

Salários, pensões e propinas

O valor das bolsas de estudo depende da propina, logo será reduzido. Donde, beneficiará os estudantes de famílias não carenciadas. É justo? Não.

A apreciação de um Orçamento do Estado (OE) pode ser realizada segundo diferentes abordagens: metas económicas e financeiras, grandes opções para a promoção do crescimento económico, políticas sectoriais (incluindo a fiscal). Detenho-me hoje naquilo que considero uma contradição na selecção dos grupos-alvo de algumas medidas, justificada pela negociação à esquerda e pela eleição legislativa em 2019.

 

Começo pelos salários dos funcionários públicos. Quando foi apresentada, em 2015, a promessa de reposição da posição remuneratória (ou, descongelamento das progressões), escrevi aqui que tal se traduziria num brutal aumento da despesa (efeito bruto de cerca de 500M€ para 2019). Mas era justo? Sim, se todos os funcionários, com o nível de avaliação requerido, dela beneficiassem. Não foi o caso, embora o Governo continue a afirmar o contrário. Esta opção política tinha uma contrapartida: o valor dos salários, sem aumento desde 2009, manter-se-ia. Depois de obtida a primeira vitória, BE, PCP e centrais sindicais reivindicam um aumento entre 3% e 4%, contra os 50 M€ milhões de euros disponibilizados à pressa pelo Governo. Os primeiros defendem um aumento para todos - correcto, embora aqueles valores sejam incomportáveis - enquanto o Governo prefere beneficiar os salários mais baixos. Correcto? Não, dado que se sabe que são os salários das actividades mais qualificadas que comparam mal com o sector privado. Nesta temática funciona a necessidade de se recuperar a situação pré-resgate na primeira medida e a sua impossibilidade na segunda. Mesmo com aumentos regressivos face ao valor do salário, a opção deveria ter sido a segunda medida. Mas as promessas eleitorais geram estes resultados.

 

No domínio das pensões, e por força do quadro legal de 2007, está prevista a actualização ordinária para cerca de 98% dos pensionistas. Os pensionistas subscritores da Caixa Geral de Aposentações, com excepção das pensões mais altas, beneficiam do crescimento económico e da baixa inflação (parâmetros estabelecidos naquela lei), mas os trabalhadores no activo não. Mas os pensionistas são um grupo-alvo fascinante em período pré-eleitoral pelo que a negociação política/parlamentar e o OE 2019 ainda acrescentam duas medidas: um aumento extraordinário das pensões inferiores a 643 M€ e um novo complemento extraordinários para as novas pensões de mínimos. A estimativa de despesa das duas medidas é de 160 M€ enquanto os dados - muito escassos - do OE apontam para um aumento da despesa com as pensões de velhice de cerca de 600 M€. Aparentemente é justo, não fora o facto de uma percentagem dos beneficiários poder ter outros rendimentos, o que o Governo desconhece. Mas o mais chocante é a barafunda política sobre (de novo) os requisitos para a reforma antecipada. Recordo o que já escrevi antes: por um lado, todos os países da União Europeia têm restringido fortemente o acesso e, segundo, uma carreira de 40 anos já não pode ser classificada de longa. A opção do Governo estava correcta: eliminação do factor se sustentabilidade (corte actual de 14,5%) mas manutenção da redução antes existente para quem aos 60 anos tenha um registo contributivo de 40 anos. Mas, afinal, os seus parceiros defendem simplesmente a eliminação de todas as penalizações. Não são ignorantes, claro, apenas não pensam que tal seria de uma injustiça gritante no momento em que a idade de reforma está a caminhar para os 67 anos, o que implica carreiras superiores a 40 anos.

 

Por último, a medida relativa à redução em cerca de 200 euros no valor da propina do ensino superior público (cerca de mil euros/ano). À primeira vista parece justo no sentido de facilitar o acesso. Mas se pensarmos que não existe rede pública para a primeira infância e que o custo alternativo pode ascender a 400 M€, temos um outro olhar. Mas aquela medida envolve outros dois aspectos: trata-se de reduzir uma receita própria das universidades e, em situações análogas, o Governo não as tem compensado totalmente; o valor das bolsas de estudo depende da propina, logo será reduzido. Donde, beneficiará os estudantes de famílias não carenciadas. É justo? Não.

 

Contradições que a razão política não desconhece. Ou então, nem sequer pensam.

Professora universitária (ISEG) e investigadora. Economista

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