Opinião
Semana horribilis
A semana, que prometia ser do regresso à normalidade, foi afinal um pesadelo. A razão do pesadelo, percebe-se hoje claramente, foi o desgoverno com que o desconfinamento se processou
"Por vezes, ficamos fiéis a uma causa só porque os seus inimigos são completamente insípidos"
Friedrich Nietzsche
Semana horribilis
A semana, que prometia ser do regresso à normalidade, foi afinal um pesadelo. A razão do pesadelo, percebe-se hoje claramente, foi o desgoverno com que o desconfinamento se processou, os maus exemplos das mais altas figuras do Estado em grandes eventos públicos, a tolerância fomentada ao desrespeito pelas regras básicas. Na região de Lisboa, a situação de saúde pública agravou-se, a comunicação foi uma desgraça e teve repercussões no exterior: alguns países fecharam as portas a receber portugueses, com medo de que daqui possa ir contágio. Internamente, a coisa também correu mal: o presidente da Câmara de Lisboa zangou-se com a ministra da Saúde, António Costa irritou-se com os peritos epidemiologistas que contrariaram a sua propaganda. No entretanto, os utentes dos transportes públicos queixaram-se de lotação excessiva e o ministro da TAP, Pedro Nuno Santos, passou dias a garantir que está tudo bem, apesar de todas as provas em contrário. De tudo isto há algumas coisas a reter: a fúria de Medina surge por causa da quebra do turismo, não se manifestou devido a preocupações com a saúde de quem vive e trabalha na cidade, como não o fez desde que a pandemia nos atingiu. E Pedro Nuno Santos tem a tarefa de comprar a TAP com dinheiro dos contribuintes, num processo diferente e menos transparente e racional do que vários apoios concedidos por outros governos europeus a companhias aéreas. Pelo meio, as Finanças, tão relutantes a darem incentivos fiscais a áreas, como por exemplo a cultura, prometem descontos no IRC e IRS aos organizadores da final da Liga dos Campeões e do IVA aos organizadores de congressos. O PS está infestado de contradições, António Costa tem poder e mostra-o, mas já não o usa para governar. O país está entregue ao acaso - descobrem-se milhões para o negócio da TAP, enquanto é uma dificuldade encontrar dinheiro para a saúde - e essa falta de recursos, dizem os especialistas, contribuiu para dificultar o combate à pandemia em Lisboa. Este é o mais triste retrato desta semana que deixa um lastro de demasiadas coisas por explicar.
"Vivemos numa sociedade que, cada vez menos, reconhece o direito ao pluralismo, que se fecha em redutos de intolerância."
Jorge Barreto Xavier
Semanada
• Portugal está na cauda da OCDE no número de cuidadores formais por cada cem idosos • segundo o Conselho da Europa, Portugal falhou as metas de redução da disparidade salarial entre homens e mulheres • um estudo realizado a nível europeu em relação à pandemia indica que para a maioria dos europeus a confiança nos Estados Unidos foi quebrada, que a União Europeia não esteve à altura das suas responsabilidades e que a perspectiva negativa sobre a China aumentou • o mesmo estudo indica ainda que há maior cepticismo sobre a capacidade de as instituições de Bruxelas para relançarem a recuperação económica • nos últimos três anos letivos, foram descontinuados mais cursos do ensino superior que aqueles que foram autorizados a abrir • desde a declaração do estado de emergência, o número de estudantes que fizeram pedidos de bolsa de estudos mais do que duplicou • a Infraestruturas de Portugal, que tutela a CP, está a restringir o acesso a estudos sobre a modernização das linhas férreas, prontos há dois anos • o ministro das Infraestruturas admitiu ser inviável cumprir o distanciamento social nos comboios • Fernando Medina disse que "com mais chefes e pouco exército não conseguimos ganhar esta guerra" à pandemia, criticando assim o Governo • a ministra da Saúde respondeu, pedindo "menos má-língua" • o ministro das Infraestruturas garantiu que o aeroporto do Montijo é para avançar, apesar dos efeitos da pandemia no sector da aviação; na Área Metropolitana de Lisboa, há 15.000 doentes em vigilância e 100 incontactáveis por dia • segundo, o INE há 10.295.909 residentes em território nacional e, deste número, 2.280.424 têm 65 ou mais anos, o que representa 22,1% do total da população, excedendo em 638 mil o verificado há 20 anos.
Aprender a escrever
Stephen King fez nome a escrever histórias de ficção científica, terror e fantasia. Está entre os dez autores mais traduzidos no mundo, foi editado em 40 países e, no total, já vendeu mais de 400 milhões de exemplares das cerca de sete dezenas de originais que escreveu desde 1974, vários adaptados ao cinema, como "Carrie" ou "Shinning". Toda esta experiência permite-lhe ter uma visão muito clara sobre o trabalho de um escritor. "Escrever", um livro entre a autobiografia e um guia sobre como escrever, tem agora uma edição portuguesa e foi considerado pela Time um dos melhores 100 livros de não-ficção de todos os tempos. Iniciada em 1997, esta obra só seria terminada em 2000, na convalescença de um grave acidente. Ele conta que, nos meses de recuperação, o nexo entre a escrita e a existência tornou-se mais crucial do que nunca para si, e decidiu fazer um guia para potenciais escritores. "Escrever" parte da experiência concreta do autor e apresenta a sua perspetiva sobre a formação de um escritor, com conselhos práticos e sobre todas as fases, desde o desenvolvimento da intriga e a criação das personagens até aos hábitos profissionais e à fuga ao trabalho. Publicado originalmente em folhetim na revista New Yorker, o livro culmina com um testemunho do modo como a necessidade irresistível de escrever estimulou a recuperação de Stephen King e o trouxe de volta à vida após o acidente. A páginas tantas, no final da primeira parte do livro, encontramos esta frase: "Começa assim: coloque a mesa num canto e, sempre que se sentar para escrever, lembre-se da razão de ela não estar no meio da sala. A vida não é um suporte à arte. É exatamente o contrário." Edição Bertrand.
Fotografia portuguesa
Nos últimos anos, tem crescido o mercado dos "photobooks" - não são livros sobre fotografia, são livros que apresentam fotografias de um autor ou sobre um tema, ou até um ensaio fotográfico. Com a diminuição da publicação de grandes reportagens fotográficas em jornais, e sobretudo em revistas, nos últimos anos houve um ressurgir desta categoria muito especial - os "photobooks", na terminologia internacional. Folhear um "photobook" com atenção é (quase) como visitar uma exposição. Por cá têm surgido alguns e destaco a colecção Ph., criada pela Imprensa Nacional, dirigida por Cláudio Garrudo.
Trata-se de uma série de monografias dedicadas à fotografia portuguesa contemporânea, com texto bilingue, à venda por 19 euros. Depois de edições dedicadas a Jorge Molder, Paulo Nozolino, Helena Almeida e Fernando Lemos, surge agora José M. Rodrigues. Após 20 anos a trabalhar na Holanda, José M. Rodrigues vive desde 1993 em Évora, onde tem leccionado na universidade local e foi o vencedor do Prémio Pessoa em 1999. Este novo volume da Ph. percorre a obra do fotógrafo, desde a sua produção recente e inédita com obras de 2020, até às primeiras fotografias do início dos anos 70 do século passado. No texto introdutório do livro, Rui Prata sublinha que as fotografias de José M. Rodrigues "são despojadas de acessórios e sublinha que as imagens "não têm ruído, limitando-se ao fundamental", muitas vezes baseado no desafio que é o próprio olhar do fotógrafo, o qual, nas últimas páginas do livro, deixa esta ideia: "O trabalho do fotógrafo reduz-se a uns segundos
numa vida inteira."
Estatísticas
A Amazon realiza 11.000 dólares de vendas em cada segundo na sua plataforma de "e-commerce" e no ano passado entregou 3,5 mil milhões de encomendas, o que significa uma para cada dois seres humanos do planeta.
Blues, soul & gospel
A primeira frase que Diane Schuur canta no seu novo disco conta logo toda a história: "The blues and I know each other." A dedicação aos blues, à soul e ao gospel fazem parte das características desta pianista e cantora que, numa época em que o jazz vocal muitas vezes é amaciado, procura manter uma identidade forte. Aqui, no novo álbum "Running On Faith", Schuur é apoiada por Ernie Watts, que co-produz o disco, por Kye Palmer no trompete, por Thom Rutella na guitarra, Bruce Lett no baixo acústico e Kendall Kay na bateria. São músicos sérios que não fazem floreados e tocam jazz sem maquilhagens. Diane Schuur está em grande forma e a sua relação com os músicos é assinalável - parece aliás ter ganho uma energia que estava ausente de outros registos seus recentes. Em "Walking On A Tightrope", a faixa inicial, é particularmente evidente a forma como ela se solta a cantar ao lado dos músicos, mudando de registo logo a seguir em "The Danger Zone". Destaque ainda para uma versão de um original de Paul Simon, "Something So Right", para o gospel "Everybody Looks Good At The Starting Line" que mostra mais uma vez a ligação entre a cantora e pianista e os músicos que aqui a acompanham e finalmente para o clássico "Swing Low Sweet Chariot", que encerra os 13 temas do álbum "Running On Faith", já disponível no Spotify.
A barlavento
A costa vicentina tem bom peixe. E tem dos melhores percebes que se podem encontrar em Portugal. O mar batido deve ser a causa. Durante muitos anos, o Café Correia, em Vila do Bispo, era o sítio incontornável para avaliar como estavam os bichos. Infelizmente, o Café Correia fechou, na porta está um agradecimento à clientela que frequentou a casa, em jeito de despedida. No largo ali perto há dois ou três sítios sem história, mas um deles, o Snack Bar Convívio, sabe tratar bem os percebes. É preciso ter paciência, mas no fim há recompensa pelo sabor do pedúnculo do bicho. Se rumarmos mesmo a Sagres, temos uma casa discreta, O Carlos, aberta desde 1993 numa esquina da zona mais recente da localidade, com esplanada ampla, e com muito respeito, também, pelos percebes frescos bem servidos. Mas O Carlos tem uma especialidade que vale a pena provar - um arroz rico de marisco, cozinhado no ponto e com o sabor a mar bem presente. Acresce ainda em abono do local uma tarte de alfarroba, amêndoa e figo como é difícil encontrar. E, para cúmulo, o serviço é bom. (Telefone 282 624 228). Para finalizar, o roteiro de Sagres recomenda-se também o Vila Velha (telefone 282 624 788), onde numa sala simpática se provou uma boa ligação de tagliatelle com camarão. Voltando um pouco acima, na Carrapateira, recomenda-se O Sítio do Rio, no caminho para a Praia Bordeira, onde tivemos a sorte de encontrar uma anchova de bom tamanho, aprimoradamente na grelha, fresquíssima. O local foi escolhido ao acaso mas portou-se muito bem. (Telefone 282 973 119).