Opinião
A erva daninha
O período mais complicado da pandemia começou agora, com o reabrir dos locais e das actividades após dois meses de um quase total encerramento.
"É muito perigoso querer estar certo quando um Governo está errado."
Voltaire
A erva daninha
O período mais complicado da pandemia começou agora, com o reabrir dos locais e das actividades após dois meses de um quase total encerramento. Os dois meses foram fundamentais para manter os indicadores em níveis baixos, para permitir que o Serviço Nacional de Saúde funcionasse sem sobrecarga demasiada e para que equipamentos de tratamento e de protecção chegassem nas quantidades necessárias. Durante dois meses houve uma trégua política assumida por todos - e manda a verdade que se diga que, no geral, o Governo fez bom trabalho. Vamos ver agora se o sistema está preparado para absorver os efeitos do desconfinamento - social e político.
Há poucos dias, António Costa anunciou que o bloco central não estava nos seus planos, referindo-se a algum entendimento com Rui Rio. Mas, na prática, aquilo a que estamos a assistir é a uma nova forma de aliança, entre pessoas de quadrantes diferentes, ambas em lugares decisivos para o país: o novo compromisso histórico não vai ser o bloco central partidário, tudo indica que será entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. Ambos vão concentrar um poder conjunto inédito em Portugal.
No horizonte estão, vindos daqui e dali da área do poder, sinais de vontade de manter um autoritarismo e um controlo governamental que nasceu no estado de emergência e que, agora, dá sinais de querer continuar e, no desejo de alguns, florescer - incentivado aliás por todos os que, desesperados com os efeitos do encerramento geral de actividades no confinamento, olharam para o Estado como a solução de todos os problemas. Está criado o terreno para o Governo aparecer como o salvador. Sem poder equilibrado por um contrapoder, essa erva daninha que é o abuso de autoridade poderá tornar-se uma praga, adubada por um compromisso histórico. Esse é o problema maior com que nos defrontamos a nível político.
Semanada
• Um inquérito recente mostra que em Portugal, aos 15 anos, só 10% dos alunos gostam muito da escola, mas em 1998 o número era de 29% • durante o período de estado de emergência foram efectuados 348 casamentos • nos hospitais, não foram realizadas nove mil cirurgias programadas durante o estado de emergência • em comparação com o mesmo período do ano passado, realizaram-se menos 181 mil consultas hospitalares no período do estado de emergência • a pandemia obrigou a reescrever os guiões das telenovelas, que voltaram a ser gravadas, mas sem cenas de beijos e de intimidade • foi descoberta uma estufa de cultivo de canábis, com uma tonelada da substância, dentro de um armazém na Maia que anteriormente era uma lavandaria • a crise da pandemia afectou 40% da força de trabalho em Portugal • o número de desempregados subiu 22,1% em Abril • 7.500 microempresas pediram apoios para reabrir portas • um estudo recente indica que, nos testes de diagnóstico à covid-19, cerca de 11% dos infectados apresentam resultados negativos • danos colaterais: segundo o Centro de Informação Antivenenos do INEM, os casos de exposição indevida a lixívia em março e abril mais do que duplicaram e o número de acidentes com desinfetantes das mãos foi oito vezes superior ao do ano passado • o mercado europeu de automóveis caiu 76,3% em abril, em comparação com o mesmo mês em 2019 e, em Portugal, queda atingiu 84,6% • o consumo de gasóleo em Portugal no mês de Abril caiu 45% e o da gasolina cerca de 60%.
Dixit
"O PS não pode tratar os militantes como parvos (...). o PS não é o partido do Costa."
Ana Gomes
Histórias de uma torre
Dia 26 de Maio, terça-feira da próxima semana, assinala-se o centenário do nascimento de Ruben Andresen Leitão, que ficou conhecido pela assinatura literária que escolheu - Ruben A. Nesse mesmo dia, vai ficar disponível nas livrarias a nova edição de uma das suas obras mais importantes, "A Torre de Barbela", a visão pessoal de Ruben A. da evolução de Portugal desde a sua fundação. Escrito em forma de romance que nasce no Minho, na margem esquerda do rio Lima, numa antiga torre de vigia que, reza a História, data da fundação da nacionalidade e que é a única torre triangular de toda a Península Ibérica. O local, a Torre de Barbela, é o ponto de partida para uma viagem a oito séculos de História através de personagens fantásticas que Ruben A. criou. O romance foi premiado em 1965 pela Academia de Ciências de Lisboa com o prémio Ricardo Malheiros. Foi publicado na Colecção Miniatura dos Livros do Brasil. A evocação do centenário do nascimento do escritor, de que esta edição faz parte, terá continuidade com as reedições de mais duas obras, "O Mundo À Minha Procura" e "Silêncio para 4", pela Assírio & Alvim, no segundo semestre. Ruben Andresen Leitão nasceu em 1920, estreou-se em 1949 com "Páginas", um misto de diário e ficção, e dedicou a sua vida ao ensino da Língua e Cultura Portuguesas em universidades do Reino Unido, nomeadamente em Londres e depois em Oxford.
Reabriu a arte
Esta semana, grande parte das galerias privadas de arte contemporânea começou a reabrir, algumas delas com exposições que estavam prontas e montadas e que não foram visitadas porque tudo coincidiu com as medidas de confinamento. As visitas são em horários mais reduzidos e com marcação, mas nos sites das galerias e, nalguns casos, no respectivo Facebook é possível agendar o que se pretende ver. Eu tenho saudades de voltar a ver obras de arte sem ser no ecrã do computador em visitas virtuais. Por falar nisso, esta semana, a ARCOlisboa abriu, não na Cordoaria mas de forma virtual, até 14 de Junho, em www.ifema.es/pt/arco-lisboa. Na próxima semana, relatarei a visita que vou fazer, mas desde já digo que a secção sobre arte africana me despertou a curiosidade. E esta semana foi também marcada pela reabertura de museus, destacando-se a inauguração de uma apresentação de desenhos de Julião Sarmento no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa (na imagem) . Sob a designação "A Linha Que Fecha Também Abre", Julião Sarmento apresenta cinco desenhos que dialogam com obras da colecção do museu, nomeadamente do desenho florentino do Renascimento e suas extensões ibéricas, obras da autoria ou atribuídas a Baccio Bandinelli, Luca Cambiaso, Corregio, Pontormo e Francisco Venegas. A exposição deste diálogo entre épocas, comissariada por João Pinharanda, decorre na Sala do Tecto Pintado do MNAA até 26 de Julho. Finalmente, para sairmos de Lisboa, na Quinta da Cruz - Centro de Arte Contemporânea de Viseu, as portas reabriram com a exposição "I Dreamt Your House was a Line", de Pedro Cabrita Reis.
Arco da velha
O Tribunal da Relação de Évora absolveu um pai condenado por violar a filha menor, considerando que esta tinha mentido, e criticou aqueles que acreditam nos relatos de agressões das vítimas de crimes sexuais e de violência doméstica, ao mesmo tempo que ironizou sobre as lesões atestadas por médicos.
O belo som do banjo
Desde já aviso que só vale a pena continuar a ler estas linhas se gostar das sonoridades crioulas de Nova Orleães e de banjo. Eu gosto, de maneira que me deliciei com "The Blue Book Of Storyville", de Don Vappie, personagem exuberante, exímio tocador de banjo, vocalista cheio de tiques locais, ao lado dos Jazz Creóle, um trio constituído para esta ocasião e que integra nomes como Dave Kelbie, na guitarra (e produção), Sebastien Girardot, no baixo, e David Horniblow, no clarinete. Cabe aqui recordar que a tradição musical de Nova Orleães está ligada ao nascimento e crescimento do jazz. Neste disco, estão canções crioulas originais (algumas no tradicional francês da região), standards de jazz e alguns originais do próprio Vappie, cuja educação musical vem aliás do jazz - começou pela guitarra e pelo baixo, e só depois se dedicou ao banjo, muito influenciado por um dos grandes músicos dos anos 40 de Danny Baker, um dos históricos tocadores de banjo e contadores de canções de Nova Orleães. Don Vappie pesquisou para este disco a música cajun, inspirações do Caribe, canções tradicionais, temas popularizados por Louis Armstrong ou Sidney Bechet, por exemplo. É difícil destacar um tema, de entre os 17 deste disco, mas o meu preferido é "Buddy Bolden’s Blues". Vappie mostra bem a importância do banjo na música de Nova Orleães e a sua relevância, muitas vezes esquecida, no jazz. "The Blue Book Of Storyville" está disponível no Spotify.
O regresso às mesas dos restaurantes
Esta semana regressei aos restaurantes que gosto de frequentar no dia a dia. Num deles procurei uma coisa trivial, mas que ali corre sempre muito bem: um meio bife do lombo, grelhado na brasa, acompanhado por batatas fritas aos palitos absolutamente impecáveis. Ao contrário do que muitos pensam, é preciso arte para isto correr bem: a carne tem de ser boa, a grelha tem de estar no ponto para vir mal passado e as batatas fritas não podem ser das congeladas nem das moles e espapaçadas - devem estar estaladiças por fora, sem ficarem queimadas. É assim que as coisas se passam na cervejaria Valbom, que nestes dias tem a vantagem de ter uma boa esplanada (Avenida Conde Valbom 114, telefone 217 970 410). E, além do bife, tem muito por onde escolher em matéria de cozinha portuguesa, como filetes de polvo com arroz de grelos por exemplo. O outro regresso foi ao melhor bacalhau à Braz que conheço - leve, ovos no ponto, húmidos, bacalhau de boa qualidade, tempero acertado. Nesse dia, na ementa, havia uma outra especialidade da casa que me deixou na dúvida - pastéis de massa tenra. Mas venceu o bacalhau e não me arrependi. O local destas confecções é O Apuradinho, na Rua de Campolide 209, telefone 213 880 501. E, embora agora apeteça voltar a uma sala de restaurante, rever conhecidos e estar à cavaqueira com amigos, se quiser, em qualquer destes locais, pode fazer uma encomenda para levar para casa.