Opinião
As 50 sombras de May
Para os Estados-membros "abandonados" o despeito inicial irá reforçar o propósito de união e a posição de muito pouca margem negocial.
No início parecia apenas mais uma daquelas habituais "jogadas" para ganhar uma boa posição negocial e obter uma mão-cheia de novas vantagens. A história da construção europeia - sobretudo vista do lado de lá do canal da Mancha - está cheia desses momentos de radicalismo e de ameaças de "bater com a porta".
Outros também o fizeram, antes e depois de os britânicos se juntarem ao clube, deixando cadeiras vazias, convocando referendos ou falando de repetidas últimas oportunidades para evitar o caos. Invariavelmente, a meio da noite, lá aparecia uma solução - em regra, prenúncio de problemas ainda maiores no futuro… - que a todos deixava uma sensação de mal menor e um sentimento de dever cumprido.
Desta vez já ninguém conseguiu carregar no travão a tempo. O Brexit veio para ficar, embora muito poucos ou nenhuns antecipem realmente o que vai ser o futuro. Concretizada a intenção do divórcio na carta assinada por Theresa May e enviada ao presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, ao abrigo do artigo 50.º do Tratado da União, inicia-se agora um longuíssimo período de dois anos de coabitação forçada entre os cônjuges desavindos, enquanto discutem as partilhas e tentam chegar a acordo sobre o relacionamento mútuo que hão de vir a ter quando cada um passar a viver na sua própria casa.
Não é preciso grandes dotes de adivinhação para antecipar que a coabitação vai correr mal. É da natureza das coisas e das pessoas. Se o projeto já não é comum, a tolerância desaparece e a presença do outro transforma-se num incómodo crescente para ambos. Daí a começarem os "passos em falso" de parte a parte é um pequeno salto. Com o arrastamento da situação, fortalece-se a tentação de colocar todas as culpas na contraparte e de inviabilizar qualquer solução proposta pelo "outro lado" só porque sim.
Para o Reino (cada vez menos) Unido o processo transformou-se, há já algum tempo, numa inevitável fuga para a frente, da qual a generalidade dos atores políticos sairá sem honra nem glória, sobretudo quando a fatura começar a chegar e os cidadãos e as empresas acharem que o preço é demasiado elevado. Com a agravante que poderá resultar da cisão interna promovida pela Escócia, que se prepara para replicar dentro de portas o terramoto europeu.
Para os Estados-membros "abandonados" o despeito inicial irá reforçar o propósito de união e a posição de muito pouca margem negocial. Os "recados" que os principais dirigentes europeus - com Angela Merkel à cabeça - já transmitiram em resposta à carta britânica e a resolução que o Parlamento Europeu vai adoptar não deixam grande margem para dúvidas: "Aquelas coisas de que o outro mais gosta" são para ficar na casa antiga e o preço da saída vai ser caro…
Quatro condições impostas pela UE assumem um peso incontornável nas negociações: 1) A relação futura entre a UE e o Reino Unido só será definida depois da saída da União; 2) Voltar atrás ainda é possível, mas as condições serão mais exigentes do que as atuais; 3) Não haverá qualquer tratamento especial da praça financeira de Londres, nem acesso preferencial do Reino Unido ao mercado único ou aos acordos alfandegários; 4) O Reino Unido é responsável pelos custos inerentes aos compromissos que assumiu enquanto membro da União e por aqueles que venham a surgir em resultado da sua saída.
Nada disso, contudo, irá eliminar o mal-estar que foi criado, nem gerar o novo impulso de que uma União Europeia claramente enfraquecida tanto necessita. Infelizmente, esta é uma daquelas situações em que o aforismo popular "só se estraga uma casa" dificilmente se aplicará…
Advogado
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