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O postigo

Este Governo vinha para mudar tudo isso. Vinha para reformar o Estado e as mentalidades. Para criar a tensão justa na corda da cítara. Da janela, que a necessidade lhe abriu, sobra um postigo e muito pouco tempo para fazer luz.

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O correr sofrido dos dias da "catastroika" traz-me muitas vezes à memória a explicação que damos às crianças sobre as causas do enjoo quando andam de carro. O carro avança, veloz, mas só o ouvido conta a verdade ao cérebro porque os olhos preferem imaginar que não nos mexemos. 


É assim que estamos, com o mundo a avançar de uma forma que provavelmente só compreenderemos, na sua totalidade, daqui a vários anos, encandeados por umas luzes que não brilham, tolhidos pela angustiante sensação de que vem aí um futuro diferente para pior, muito mais sombrio do que tudo o que a meia-idade da minha geração já viveu.

O Martim Avillez escrevia, este fim-de-semana, que os portugueses querem uma coisa simples: menos Estado e mais economia privada e interroga-se: será assim tão complicado?

Infelizmente, acho que sim. Mesmo acreditando, para simplificar, que os portugueses partilham o desejo do Martim, será muito difícil ter menos Estado e mais economia.

Difícil porque a nossa geração só conheceu o momento mais confortável das nossas vidas e, distraída, imaginou o crescimento permanente. Depois dos trinta gloriosos anos, corremos o risco de ter entrado numa espiral recessiva de duração semelhante.

Difícil porque o país é pobre e vai descobrindo que mesmo que seja melhor cortar na despesa do que aumentar a receita, por via do confisco em curso, tudo vai, no plano social dar quase ao mesmo, porque afinal cortar na despesa é, sobremaneira, sinónimo de despedir na função pública ou reduzir as pensões.

Difícil porque enquanto a globalização não chocou de frente com a realidade vivemos na ilusão de que havia um Estado soberano. Não deixa de ser profundamente irónico que o G8 desta semana, a cimeira dos líderes das economias capitalistas melhor sucedidas, se reúna sob o mote do combate aos malefícios do capital apátrida, procurando tributar os milhões de milhões de euros e de dólares itinerantes que fogem a qualquer carga fiscal significativa.

Difícil porque o Estado cuja dimensão se quer reduzir foi mansamente reduzido na sua independência, nos instrumentos de defesa da soberania económica, na possibilidade de decisão política, na possibilidade de escolha. Desapareceu a política cambial, desapareceu a política orçamental, está em vias de desaparecer a política fiscal. Num contexto de pobreza das famílias e de penúria das empresas não sobra muito.

Difícil porque os cidadãos, as famílias e as muitas empresas, afinal, não querem mais economia privada. Querem que o Estado os salve (ou que um qualquer líder partidário da oposição os prometa salvar). Essa foi a tradição do Estado liberal português (entenda-se como tal o Estado posterior à revolução de 1820) que distribuiu alegremente pela sua clientela política o património das ordens religiosas e os projetos de infraestruturação do país e a respetiva dívida. Essa foi a tradição de António de Oliveira Salazar que estatizou duradouramente os cidadãos, as famílias e as empresas. O 25 de Abril prometeu e a Constituição de 1976 garantiu a estatização da economia. E até o Prof. Cavaco amealhou duas maiorias absolutas engordando a função pública e os seus reformados.

Não, afinal, os portugueses não querem menos Estado e mais economia privada. Querem mais Estado e que alguém pague a conta... A economia privada não faz sequer parte da equação deste putativo contrato social lusitano. Este Governo vinha para mudar tudo isso. Vinha para reformar o Estado e as mentalidades. Para criar a tensão justa na corda da cítara. Da janela, que a necessidade lhe abriu, sobra um postigo e muito pouco tempo para fazer luz.

Advogado, militante do PSD

(Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico)

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