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José Cutileiro - Embaixador 25 de Setembro de 2013 às 00:01

O nevoeiro da paz

Há dois séculos - desde que Clausewitz se lembrou dos Actos dos Apóstolos - especialistas gostam de evocar o "nevoeiro da guerra".

Houve interesse mais geral há 10 anos quando o realizador de um documentário sobre Robert McNamara, ministro da defesa de Jack Kennedy e de Lyndon Johnson durante a guerra do Vietnam, chamou ao filme "The Fog of War" (O Nevoeiro da Guerra). Antes de haver telegrafia, telefone, observação aérea, comandar tropas em acção estava à mercê de ainda mais imprevistos do que nos nossos dias. Em Waterloo, na tarde de 18 de Junho de 1915, quando Wellington ia mandar retirar as suas tropas por se dar por vencido, Napoleão viu ao longe pelo seu óculo uma nuvem de poeira e julgou que fosse Grouchy, general comandante de corpo de exército que se lhe deveria juntar, o que confirmaria a vitória. Mas não era Grouchy, era o prussiano Bleucher que conseguira chegar mais depressa do que o francês ao campo de batalha, determinando a derrota do Imperador. (Por uma unha negra – "the nearest run thing you ever saw", disse Wellington - fracassou assim a primeira tentativa em tempos modernos de estabelecer uma União Europeia. A segunda foi a de Hitler. A terceira é a que temos agora, feita em paz por ser hoje a maneira politicamente correcta de tratar destas coisas).


Entre as guerras napoleónicas e a guerra do Vietname observação e comunicações tinham progredido muito mas o termo continuava a usar-se porque as coisas susceptíveis de perturbarem os planos de quem comande tropas em combate são também de muitas outras naturezas. Alem disso, devido sobretudo a progressos técnicos, a vida civil tornou-se tão complexa que, passado meio século sobre a guerra do Vietname, quem queira entender o que se passe agora não só em países cujas zaragatas internas animem estrangeiros, empenhados como quem aposte em combates de galos numa ou outra das partes em contenda (por exemplo, a Síria) mas também em países ricos, com o rei na barriga, ordem na rua, nos bancos e nas fronteiras (por exemplo, a Alemanha ou – porque não? – a França) quem queira assegurar-se do que julgue ver e ouvir, no sítio certo e na conta certa, vai ter de se debater contra o nevoeiro da paz ("The Fog of Peace", se uma dessas inquirições fosse apresentada em versão Hollywoodesca).

Dizia-se de um historiador célebre que sabia tudo e não entendia nada. Nesse apuro estará a National Security Agency dos Estados Unidos, salvo para patriota néscios convencidos de que com ela Washington passou a entender tudo. Cada um de nós, à sua escala, está afogado em muito mais informação do que a precisa para fazer juízos próprios e arrisca-se a que a informação má escorrace a boa: "Hoje olha-se só para análises e raios x" queixava-se-me um velho médico. "Já ninguém vê doentes e sintomas". "Mutatis mutandis", é assim em tudo. Pode-se distinguir a verdade do erro mas há hoje tanto nevoeiro na paz como na guerra e o nevoeiro da paz é como o sono da razão de Goya: produz monstros.

* Embaixador

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