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10 de Novembro de 2020 às 17:49

Imensa tristeza

É preciso, nesta hora de angústia, ter igualmente a coragem de tomar medidas sérias contra a pandemia. Não medidas para "alemão ver" como as que o Governo tomou no fim-de-semana, assentes numa falácia sem sentido: a do contágio familiar.

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É com imensa tristeza que assistimos ao desmoronar do último bastião do Estado providência europeu, os serviços nacionais de saúde universais e gratuitos. Da Itália, o primeiro a cair com estrondo, ao Reino Unido, da Espanha à Suécia, da Bélgica à Holanda, e agora a França resistindo apenas o serviço nacional de saúde Alemão que tem acolhido doentes franceses, holandeses e belgas. Todos incapazes de controlar uma pandemia que apesar de tudo tem uma taxa de mortalidade relativamente pequena – cerca de 0,15% da população no Peru, o país com o pior registo (naturalmente este número pode vir a tornar-se mais elevado se o combate na generalidade dos países continuar ineficaz como até agora).

 

A França anunciou agora que rejeitará o tratamento aos mais velhos e decide deixá-los morrer sem assistência. Uma péssima decisão até do ponto de vista clínico. Os mais novos resistem melhor e conseguem com menos cuidados de saúde vencer a doença e os mais velhos precisam de toda a ajuda para sobreviver. Já outros o fizeram antes.

 

As decisões de quem tratar e de quem deixar morrer também têm atingido mortalmente as minorias étnicas cujos membros têm morrido em maior número do que os grupos maioritários.

 

Anos de políticas neoliberais deixam as pessoas desprotegidas à mercê da pobreza, da doença e da morte. Anos de políticas neoliberais de diminuição de camas hospitalares, de redução de investimentos, de redução de hospitais, de formação de poucos médicos, da não reposição dos profissionais (regra do saem dois entra um) foram enfraquecendo os Estados e os serviços nacionais de saúde. Não foi só em Portugal é certo, mas por aqui se "foi mais além do que exigia a Troika".

 

Os serviços públicos colapsam e os seguros privados deixam de fora a grande maioria da população e, em geral, não cobrem os tratamentos da covid.

 

As duas bases do Estado Providência ruíram na Europa, primeiro o sistema de pensões, que em Portugal pagando reformas de 211€ deixa abaixo do limiar da pobreza grande parte dos idosos, e o serviço nacional de saúde.

 

É preciso coragem para o assumir e procurar uma alternativa que substitua estes dois pilares fundamentais da coesão social e da decência social. São necessárias alterações profundas que vão dos valores mínimos a pagar à forma de financiamento, passando por outras regras como a idade de reforma, etc..

 

É preciso, nesta hora de angústia, ter igualmente a coragem de tomar medidas sérias contra a pandemia. Não medidas para "alemão ver" como as que o Governo tomou no fim-de-semana, assentes numa falácia sem sentido: a do contágio familiar.

 

Vejamos uma família saudável, casal com dois filhos vivendo em conjunto e visitando amiúde a casa os sogros do homem. A mulher infeta-se no metro apinhado a caminho do trabalho. Depois passa a doença ao marido, aos filhos: O marido ainda assintomático infeta os sogros quando vai buscar os filhos que ficam à guarda dos avós depois das aulas. Ao todo ficaram infetadas 6 pessoas, de dois agregados diferentes, cinco das quais em ambiente familiar (83%), mas a verdadeira causa de todas as infeções foi o transporte público que surge como responsável por apenas 17% destas infeções. Mais falacioso do que atribuir a causa das infeções ao ambiente familiar não pode haver.

 

E mais. Percebendo que um infetado transmite a doença aos seus familiares próximos o que faz o Governo? Obriga-os a ficar juntos durante largos períodos do dia ao mesmo tempo que podem continuar a utilizar o metro em hora de ponta, trabalhar em fábricas apinhadas, cozinhas apertadas, oficinas esconsas e escritórios em open space. Ótima estratégia. Quem poderia fazer melhor?

 

A Europa não percebeu a estratégia chinesa e asiática de contenção do vírus. Apelidou-a de totalitária, socialista, comunista e até, em tom racista, de asiática. Mas no mundo essa foi a estratégia vencedora, a que preservou simultaneamente vidas e a economia. Para esse êxito foi preciso solidariedade humana, coesão social (uma província de 60 milhões de habitantes esteve vários meses em quarentena e para aí foram deslocados meios materiais e humanos) e clarividência política. Tudo o que parece faltar na União Europeia.

 

O neoliberalismo tem vindo a ditar o declínio económico e social dos países da Europa Ocidental. A História mostra-nos que isso conduziu no passado aos populismos de extrema-direita e finalmente à guerra. Será ainda tempo de mudar de prioridades?

 

Economista

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