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Je suis Nazaré

O surf que foi interdito na Praia do Norte não é uma brincadeira de crianças. É um negócio sério, com um potencial turístico inigualável, e que tem de ser tratado com a importância real que tem para o futuro do país.

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No dia em que acordámos com as imagens da Nazaré atulhada de gente, para ver os surfistas de ondas gigantes na Praia do Norte, o país ficou louco. Mais uma história de irresponsabilidade cívica, parecia, e logo uma semana depois do delírio que foi o Grande Prémio de Fórmula 1, em Portimão. Tudo verdade, tudo grave. Mas o pior veio a seguir. Enquanto no Algarve a consequência imposta pelo Governo foi lógica e bem medida – proibir assistência na próxima grande prova internacional de motociclismo –, na Nazaré, pela voz da capitania local, chegou-nos uma sentença no mínimo surpreendente. Em modo meio militar meio desinteressado, o capitão do porto anunciou que toda a prática de surf estava proibida. Assim mesmo, sem apelo nem agravo. Para curar uma ferida num dedo... amputa-se o braço. É não perceber nada sobre a economia que temos.

Nos últimos anos, esta etapa da Praia do Norte do Circuito Mundial de Ondas Gigantes tornou-se um dos eventos portugueses mais mediatizados de sempre. Além da transmissão em diferentes canais de cabo dedicados à modalidade, seguidos hoje em dia por centenas de milhares de fãs de surf, não há Inverno em que as fotografias e os vídeos destes acontecimentos não encham as redes sociais, de forma espectacular e incrivelmente rentável para Portugal.

Por causa disso, Nazaré passou a ser uma palavra sagrada no mundo do surf, que é um dos desportos em maior ascensão no planeta, gerando um negócio cujo valor já se estima ultrapassar os 10 mil milhões de dólares.

Em Portugal, onde sempre houve condições naturais para atrairmos estes fãs e este dinheiro, nunca houve, infelizmente, talento nem capacidade para reter um milímetro dessa atenção. Nunca, isto é, até que o famoso canhão da Nazaré foi descoberto.

Os efeitos económicos dessa descoberta estão à vista. Para a própria região, em primeiro lugar, que em meia dúzia de anos viu todo o tipo de negócios à volta do fenómeno explodir – hotéis, hostels, parques de campismo, tours, lojas, restaurantes, bares e escolas de surf ; para as outras cidades do país, nomeadamente Lisboa e Porto, que começaram a receber os turistas de surf na sua primeira escala antes de rumarem ao santuário das ondas; e para as muitas praias de ondas ao longo da nossa costa atlântica, onde antes não se via um único turista e que hoje chegam a estar cheias de visitantes estrangeiros, sendo que alguns até se tornaram residentes.

A montante disto passámos a vender o nome Portugal em canais nos quais nunca existimos e que têm centenas de milhares de seguidores. Conseguimos falar para um segmento totalmente novo de público, jovem adulto, com poder de compra e que inevitavelmente vai dominar o mercado de turismo nos próximos anos. E desviámos a atenção turística para fora dos nossos dois centros metropolitanos e, ainda mais importante, durante as épocas baixas, ou seja, conseguimos cumprir dois dos objectivos recorrentes de qualquer estratégia pública de turismo dos últimos dez anos.

Nada disto é novo ou passou despercebido ao Turismo de Portugal, já agora, que há poucos anos usou a imagem da poderosa onda numa campanha que encheu um ecrã gigante em pleno Times Square nova-iorquino, a praça mais famosa do planeta.

Mas no tal dia em que acordámos com a imagem da Nazaré inundada por gente sem máscara ninguém se lembrou de nada disto. E é razoável que assim fosse, porque importava a ameaça da covid mais do que qualquer outra coisa. Já no dia em que o senhor capitão do porto da Nazaré decidiu interditar a prática do surf na Nazaré por ser impossível (!) controlar as multidões que assistem ao fenómeno, aí sim, falhámos. Por não questionar a mais do que duvidosa proibição, por não questionar a capacidade que as autoridades militares e locais têm para prevenir e evitar problemas destes, como de resto fazem no resto do país.

Pensar que tudo isto não é grave, porque vivemos tempos de excepção e tudo vai passar, é igualmente errado. Para quem não sabe, as semanas em que a fase final da Liga dos Campeões foi jogada em Lisboa e em que o Grande Prémio de Automobilismo decorreu no Algarve foram, para centenas de operadores associados ao turismo, as únicas, desde o fatídico mês de Março, em que se fez dinheiro suficiente para pagar as contas. Desvalorizar a importância destes eventos para a economia nacional não é, portanto, um pormenor. É um exercício de arrogância, que desvaloriza as dificuldades que o sector do turismo está a passar e a necessidade que temos de mostrar ao mundo que estamos vivos e à espera do regresso da normalidade.

O surf que foi interdito na Praia do Norte não é uma brincadeira de crianças. É um negócio sério, com um potencial turístico inigualável, e que tem de ser tratado com a importância real que tem para o futuro do país. Não é possível mantermos a economia viva se continuarmos a ignorar o impacto financeiro e sobretudo simbólico destas grandes conquistas dos últimos anos.

Alguém explique a quem tomou esta decisão que a vaga que é preciso achatar não é a da Nazaré.

 

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