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E se forem os melhores a falhar?

E o que está longe, a horas de voos ou dias de barco, não são campos verdes. O seu sucesso é mesmo seu, acaba neles, não provoca nada que estimule a economia.

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Pesca, Pistola y Corazon, Rio Maravilha, Café Lisboa, Canto, O Asiático, O Boteco, Meat Me, Big Fish Poke. Para quem não conhece, todos estes restaurantes faziam parte das listas do Melhor de Lisboa em 2020. A covid fechou-os. Como já fechou dezenas de outros espaços em Lisboa, no Porto e no resto do país. Alguns conseguirão reabrir, mas a maior parte não terá essa capacidade. A falta de clientes - a míngua de turistas - foi fatal para o negócio.

 

Há muitas coisas que estas listas negras nos devem fazer pensar. A primeira é que estes espaços não falharam - fecharam. É uma diferença muito relevante. No mundo normal, sem covid, todos eles já tinham exibido talento e recursos suficientes para vingar, lucrar e continuar a inspirar outros negócios. Ora, falhar é bem diferente: é fazer negócios com más ideias, maus números ou até mau gosto. Não foi o que aconteceu à maioria destes projectos, ambiciosos e ponderados, que foram apenas traídos pela sorte. Só isso.

 

A segunda conclusão que me parece óbvia é que, como estas listas negras não se encontram publicadas em lado nenhum, continuamos a lidar com as más notícias dos negócios com a atitude da avestruz. Empreendedor não chora, não gosta de reconhecer azares ou fracassos e, por isso, continua a fingir que está tudo bem, o problema maior é dos outros, coitadinhos. Recorrendo a uma velha imagem da saúde mental, ir ao fundo também é encontrar o único chão que nos impulsiona. Valeria bem mais a pena diagnosticar o problema real do que andar a fingir que só os outros têm problemas. Até porque é isso - a falta de informação concreta sobre as dificuldades - que faz com que as autoridades desenhem planos de ajuda para Março e Abril do próximo ano, quando a tal lista, adivinho, já vai ter um tamanho muito difícil de gerir, talvez até impossível.

 

O IVAucher, que faz parte dessa ajuda, tal como genericamente todas as medidas deste Orçamento do Estado dirigidas à restauração, é uma boa medida. Bem-intencionada e com um valor nada menosprezável para o panorama geral do sector. Mas como tudo o que é geral e de banda larga, não chegará com velocidade nem impacto suficiente aos problemas muito particulares dos negócios assumidamente vocacionados para o turismo.

 

E esta é a terceira e mais importante conclusão: a importância especial e diferenciada dos bons projectos turísticos, que se podem tornar supertransmissores do vírus económico.

 

O turismo, digam o que disserem os políticos, economistas e também os comentadores, representa de longe o maior risco sistémico para a economia do país. E nem é pelos números do desemprego e pelos penhascos de falências que ouvimos as associações do sector falar todos os dias. Tudo isso aterroriza, é verdade, mas não contamina a economia tanto quanto os efeitos indirectos.

 

A melhor maneira de explicar isto é pelo seu contrário. Ou seja, pelos restaurantes de sempre, tradicionais, que continuam abertos e a trabalhar bem. Há sinais claros na sociedade de uma espécie de orgulho nacional nestes casos, a quem os jornalistas chamam resistentes e heróis, como se eles provassem que o pequenino e antigo, o que é mais modesto, honesto e trabalhador é o que vinga, com covid ou sem ele. Acontece que não é assim.

 

Na maioria dos casos, os tais sobreviventes, que se orgulham de estar a fazer hoje quase tanto como há um ano, pagam uma renda negociada há 30 anos, têm o mesmo equipamento desde que abriram, dependem da família atrás do balcão, pagam salários mínimos aos restantes trabalhadores e, cereja em cima do bolo, compram os ingredientes num supermercado grossista que importa tudo de longe. E o que está longe, a horas de voos ou dias de barco, não são campos verdes. O seu sucesso é mesmo seu, acaba neles, não provoca nada que estimule a economia.

 

Já quem aposta nos produtos sustentáveis, quem compra aos produtores locais, quem contrata funcionários com formação profissional, quem investe em equipamento tecnológico de ponta, quem contrata escanções (que são de longe quem melhor vende o vinho nacional) e outras especializações curriculares, quem, enfim, investe em vender Portugal para fora é, de longe, quem mais pode multiplicar a qualidade e o reconhecimento exterior do país. E por azar, são esses quem está em maior risco de fechar.

 

A última crise económica do país, ao contrário desta, fechou centenas de negócios frágeis, fracos e maus, mas deixou de pé quase todos os de qualidade. Esta, pelo contrário, por afectar directamente o turismo, onde mais nos destacámos nos últimos anos, toca no ponto mais sensível do nosso crescimento.

 

Voltemos agora à lista negra. No terraço do Rio Maravilha, no topo de um dos edifícios da LX Factory, está a escultura Crista Rainha de Leonel Moura. A imagem desta Crista iluminada à noite já esteve nas páginas dos maiores jornais do mundo a representar a nova Lisboa e o novo Portugal. Como os pratos de Diogo Noronha, que no seu Pesca queria dar a primeira estrela Michelin ao peixe nacional. Ou como o Canto, de José Avillez, que tentava fazer o óbvio, mas que nunca tinha sido feito: juntar fado e música de qualidade a boa comida. Ou até o Café Lisboa, do mesmo Avillez, que foi talvez o primeiro restaurante de qualidade dentro de um monumento nacional.

 

O que estamos a assistir não são apenas restaurantes a fechar. São passos atrás na construção de uma imagem de qualidade e criatividade que Portugal nunca teve e conquistou por direito. Apoiar estes negócios de valor excepcional, os que ainda estão vivos e a batalhar, é pois apoiar os produtores de topo que deles dependem e fazer com que o talento e o conhecimento dos melhores profissionais não volte a emigrar. É, em suma, o caminho mais certo para garantir que voltaremos ao lugar onde estávamos, com empresários motivados e inspirados.

Presidente e diretor criativo do Time Out Market

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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