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A triste verdade sobre as estrelas Michelin

O modelo Michelin, em vigor desde 1931, é assumidamente opaco: não revela quem faz as avaliações, quando é que o faz, quantas vez o faz ou porque é que os escolheu. Os seus críticos não têm de ser locais e, contrariamente à prática de todos os meios de comunicação respeitáveis, admitem falar com o chef no final da sua visita.

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Já é uma tradição de Natal: todos os anos o mundo dos restaurantes faz apostas sobre quem vai ganhar as próximas estrelas Michelin. Este ano o grande vencedor foi Ljubomir Stanisic, do 100 Maneiras, que apanhou uma das duas estrelas que caíram no nosso país. Como é o homem do momento, todos nos focámos na sua celebração - mais do que normal -, e ignorámos o resto. Mas o resto é Portugal ter recebido duas estrelas e Espanha 22. O resto é Portugal ter mãos cheias de projetos de qualidade que continuam a ser ignorados. O resto é a Michelin continuar a avaliar todos os restaurantes de Portugal com um (um!) único juiz português e 12 emprestados de Espanha. O resto, em suma, é esta avaliação ser cada vez mais um exercício grosseiro de destruição reputacional e financeira do nosso país. Já é altura de assumir esta triste verdade.

O tema impõe um esclarecimento pessoal: há mais de uma década que trabalho para um grupo editorial - Time Out -, que é um dos poucos a avaliar restaurantes nos quatro cantos do mundo. O que a Time Out faz, no entanto, não é próximo nem concorrente da Michelin, mas do que dezenas de outros títulos – sobretudo anglo-saxónicos, como o New York Times, o Los Angeles Times, o Guardian ou o Sunday Times – fazem nas suas páginas. Um exercício regular de avaliação de restaurantes, publicado logo após as visitas, por críticos locais que também falam para leitores locais.

O modelo Michelin, em vigor desde 1931, é assumidamente opaco: não revela quem faz as avaliações, quando é que o faz, quantas vez o faz ou porque é que os escolheu. Os seus críticos não têm de ser locais e, contrariamente à prática de todos os meios de comunicação respeitáveis, admitem falar com o chef no final da sua visita.

Antes de explicar porque é que tudo isto é falível, é preciso dizer que o famoso guia tem o mérito de ter criado uma espécie de campeonato mundial dos restaurantes, a Fórmula 1 do negócio, que seleciona os melhores dos melhores. Para entrar no grupo, os restaurantes têm de cumprir níveis elevados de qualidade em dois pontos específicos, comida e serviço, o que ajudou a melhorar milhares de restaurantes nestes aspetos.

Na prática, no entanto, teve uma consequência perversa: os restaurantes uniformizaram-se. E este é o primeiro defeito da marca: de Banguecoque a Nova Iorque, passando por Bombaim ou Lisboa, todos os negócios que almejam estrelas passaram a falar a mesma língua. Toalhas de mesa, jalecas dos chefs, descrição exaustiva de pratos e até a famosa surpresa no final da refeição - tudo é parecido, previsível, aborrecido.

Os chefs reconhecem-no, mas pouco podem fazer. Na Liga dos Campeões, defendia um deles uma vez quando o confrontei com a ideia, “também há regras, uniformes, calendários e jogadas iguais”. É verdade. Mas desengane-se, portanto, quem espera ver mais arte na comida do que no futebol.

O segundo grande problema do guia é a obsessão pela comida e pelo serviço. São critérios fundamentais, claro, mas o consumidor do século XXI também valoriza a localização, a decoração, a música e o ambiente. No limite, até as pessoas à sua volta. Ignorar estes elementos de contexto leva à glorificação de restaurantes frios e insossos, como os que povoaram a primeira geração Michelin no Algarve.

Finalmente, o maior problema de todos: dores de crescimento. É o drama de qualquer marca que quer crescer sem os meios adequados e a Michelin não é exceção. Quis estar em mais cidades e países, nos últimos anos, e para isso adotou critérios diferentes em cidades diferentes. Abriu caminho a restaurantes mais informais na Tailândia e em Nova Iorque; continua estacionada no tempo em Paris ou Lisboa. Recrutou críticos de topo em grandes cidades, emprestou críticos de outras paragens às cidades mais pequenas ou emergentes.

Portugal não é a única vítima deste desnorte, mas é um dos exemplos mais severos. Sobram exemplos. Em Lisboa, João Rodrigues, um dos melhores chefs deste país, vê recusada a segunda estrela ao Feitoria ano após ano, sem que ninguém perceba porquê (nem nunca saberá, porque a Michelin não explica). Prado, o restaurante-tendência dos últimos anos, elogiado por todos os críticos que puseram os pés na capital, continua fora das estrelas, porque - dizem os advogados do diabo - a informalidade de António Galapito não é estilo-Michelin. No Leste de Londres seria, em Copenhaga ou no Lower East Side de Nova Iorque também, mas aqui não.

No Porto, mais do mesmo. Euskalduna, de Vasco Coelho Santos, dá voltas de avanço a dezenas de restaurantes com uma estrela Michelin pelo mundo fora, incluindo, ironicamente, os que estão a escassos quilómetros na Galiza. Mas não convence os juízes. Tal como o Paparico, do restaurateur Sérgio Cambas, que se alguma qualidade soube exibir até agora foi a tremenda consistência na qualidade. Em França, dizem que esse é o segredo das estrelas, aqui também é diferente.

Reconheço que tudo isto soa a conversa de mau perdedor, mas apenas há uma década, quando Portugal se queixava da mesma sobranceria, disse e escrevi que não tínhamos motivos de queixa. Estávamos, de facto, a anos luz do que se fazia na gastronomia lá de fora, em qualidade e arrojo. Acontece que despertámos, crescemos e hoje até somos exemplo para muitos destinos concorrentes.

A Michelin é das marcas com mais influência nas contas de um restaurante. O impacto de uma estrela pode variar entre um mínimo de 20%, para um nome francês conhecido, a 200% para um nome menos conhecido numa cidade emergente. É fácil antecipar o preço que pagamos por este tratamento terceiro-mundista. Se os chefs não se podem queixar, com medo justificado das consequências, nós podemos. Todos nós. É bom que o façamos.

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