Opinião
Revoluções na Ucrânia
A UE não tem condições para se substituir financeiramente à assistência russa e juntamente com o FMI prover os 35 mil milhões de dólares que o novo ministro das Finanças, Iuri Kobolov, alega precisar até final de 2015.
A tomada do poder em Kiev por uma frente política heterogénea, congregando nacionalistas ucranianos do centro-esquerda à extrema-direita, acentuou a contestação identitária nas regiões russófonas do Leste e Sul.
A União Europeia – muito em particular a Polónia e a Alemanha – e a Rússia estão, por sua vez, de facto à compita pela influência num estado em que pela segunda vez desde 2004 o poder institucional se desagregou ante protestos de rua.
Viktor Yanukovitch incapaz de reprimir as manifestações perdeu o apoio dos poderes regionais e das oligarquias que o sustentaram desde a eleição presidencial de 2010, designadamente dos multimilionários Rinat Akhmetov e Dmitri Firtash, e finou-se numa fuga desnorteada.
Confrontos em cascada
A queda de Yanukovitch custará caro às figuras mais expostas da cleptocracia presidencial, como o seu filho Oleksandr e o testa-de-ferro Sergei Kurschenko, mas presentemente não há condições para a emergência de um poder forte que impunha uma recomposição de interesses a partir do aparelho de estado sacrificando os oligarcas do pós-sovietismo a novos cliques conforme ocorreu na Rússia com Vladimir Putin.
Os grupos económico-financeiros mais ligados aos sectores mineiros, metalúrgicos e da indústria pesada, optam preferencialmente pela manutenção de um estado independente e unitário em vez de apoiarem movimentos separatistas que levariam as regiões russófonas a cingir-se à tutela de Moscovo.
A Ucrânia apesar da dependência energética de Moscovo não pode, por outro lado, prescindir da UE que é parceiro comercial com peso equivalente à Rússia e foco de influência nas regiões Ocidentais ligadas historicamente a Polónia e ao antigo Império Austro-Húngaro.
Políticos e empresários já testados em lutas pelo poder, como Yulia Timoshenko ou Petro Poroshenko, estão de novo na liça política, mas a sua capacidade de mobilização é limitada pela imagem generalizada de corrupção que sucessivos governos e presidentes têm deixado.
A pouco entusiástica recepção a Timoshenko na Praça da Independência de Kiev no sábado da libertação da antiga primeira-ministra não obstou a que o seu braço-direito Oleksandr Turchinov fosse eleito presidente do Parlamento e chefe de estado interino, mas as relações de forças entre as diversas facções políticas impedem a emergência de líderes indiscutíveis.
A forte e decisiva mobilização de grupos de extrema-direita anti-russos e anti-semitas e a influência de "Liberdade", liderado por Oleh Tianibok e quarto maior partido parlamentar, são factores condicionantes na formação de um governo de transição e "casus belli" ideológico para o Kremlin agitar a ameaça nazi-fascista.
A tensão russo-ucraniana
O "Partido das Regiões" renegou Yanukovitch, viu desertarem 77 deputados, perdeu a maioria, mantendo 130 mandatos, sendo ainda a maior bancada entre os 450 deputados, mas foi impotente para impedir que o Parlamento reinvestido de poderes reforçados pelo retorno à constituição de 2004 agravasse a tensão étnico-político-regional com um ataque directo à sua base de apoio.
A "Rada" revogou a lei de Julho de 2012 que permitia o estatuto de "língua regional" aos idiomas falados por pelo menos 10% da população de uma região, caso do russo em áreas do Sul e Leste da Ucrânia além do romeno e húngaro em localidades da Transcarpátia (antiga Ruténia da Checoslováquia transferida para a URSS em 1945).
A reimposição do ucraniano como língua única oficial a todos os níveis da administração é tida como uma afronta pelos russófonos (cerca de 30% da população) e surge como mais um factor de mobilização para os contestatários da frente no poder em Kiev.
A regionalização ou federalização são agora apresentadas como alternativas a um centralismo que favoreça determinado grupo etno-linguístico e nessa lógica o governador da região russófona de Kharkiv Mikahilo Dobkin anunciou a sua candidatura às eleições presidenciais de 25 de Maio juntando-se a Vitali Klitsckho um dos líderes do protestos mais cultivados pela UE.
Em Sevastopol, porto com 350 mil habitantes, o russo Aleksei Chali foi, entretanto, eleito presidente da câmara e por toda a península da Crimeia (território russo cedido por Nikita Krushov à Ucrânia em 1954) a maioria russa manifesta oposição aos novos poderes em Kiev.
Uma Primavera com a faca na garganta
O Kremlin, que negociou a permanência em Sevastopol da sua esquadra do Mar Negro até 2024, só em último recurso favorecerá uma partilha da Ucrânia e desde já, contestando a legitimidade das novas autoridades, congelou o apoio financeiro a Kiev para pagamento de serviço de dívida e aquisição de gás natural (17 mil milhões de dólares dos quais 5 mil milhões já desembolsados na sequência da recusa de Yanukovitch em assinar em Novembro um "Acordo de Parceria" com a UE).
A UE não tem condições para se substituir financeiramente à assistência russa e juntamente com o FMI prover os 35 mil milhões de dólares que o novo ministro das finanças, Iuri Kobolov, alega precisar até final de 2015, sem considerar sequer uma reestruturação da dívida de Kiev que terá de ser negociada com Moscovo.
A eliminação de subsídios, designadamente a combustíveis, desvalorização do hrivnia, cortes para conter um défice orçamental que rondará os 7% a 8% do PIB, revisão das leis de concorrência e sistema fiscal, são algumas das obrigações a que terá de se comprometer um governo em Kiev para obter financiamentos em caso de ruptura com Moscovo.
As fúrias que assolam a Ucrânia, a recusa do Kremlin em aceitar um governo em Kiev ideologicamente desafecto e oposto a uma "União Euroasiática" aduaneira e económica pautada pelos interesses de Moscovo, dificilmente permitirão a eleição de uma maioria suficientemente coerente e com abrangência nacional para impor reformas socialmente muito gravosas.
Com as presidenciais de Maio, a que se juntarão eleições para a câmara de Kiev, seguindo-se provavelmente legislativas antecipadas para substituir a "Rada" votada em Outubro de 2012, se começará a perceber se a Ucrânia tem condições para subsistir como estado unitário ou se a secessão é alternativa realista e até lá resta tentar escapar à bancarrota.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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