Opinião
Outra Guerra Fria
A Segunda Esquadra norte-americana retomará a protecção da costa leste e do Atlântico Norte para conter eventuais ameaças da Rússia, anunciou este mês o almirante John Richardson, e deixou o tom de Guerra Fria a pairar no ar.
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O comando militar, dissolvido em 2011, voltará a Norfolk, Virginia, no âmbito da reorganização estratégica para fazer face aos desafios de competição entre grandes potências, indicou o responsável máximo militar da Marinha dos Estados Unidos.
Em Pequim, entretanto, no âmbito das celebrações do 200 anos do nascimento de Karl Marx, um professor da Escola do Comité Central do Partido Comunista, Li Haiqing, sintetizava deste modo a doutrina de Estado: "Promover o socialismo em todo o mundo sob a direcção do pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo de Características Chinesas para a Nova Era".
Em Bangui, por sua vez, a segurança do presidente Faustin-Archante Touadéra ficou recentemente a cargo de forças especiais russas, sob o comando de Valeri Zakharov, desafiando a tutela de França, antiga potência colonial, num cenário de confronto pelo controlo de minerais estratégicos na República Centro-Africana, onde opera, igualmente, uma missão da ONU com participação portuguesa.
Sushma Swaraj, ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, reafirmou esta semana, por seu turno, que Nova Deli respeita sanções impostas pela ONU, mas não aderirá necessariamente a sanções unilaterais de Washington contra o Irão, terceiro maior fornecedor de petróleo da Índia.
Confusas e contraditórias iniciativas para promover uma indefinida desnuclearização da Coreia do Norte parecem, à primeira vista, fugir ao cenário característico de Guerra Fria com disputas de soberania no Árctico e no mar do Sul da China, enquanto Washington prossegue uma política de isolamento da Cuba comunista.
Poder e ideologia
O desnorte da administração Trump lembra, contudo, as ambiguidades e agruras de James Carter ao negociar acordos de controlo de armamento com Moscovo num quadro de incursões cubanas e soviéticas na Etiópia (1977), no rescaldo da intervenção em Angola de Havana em Angola.
O presidente democrata viu-se, ainda, obrigado a dar a sua anuência a Deng Xiaoping para o ataque chinês ao Vietname em 1978 em represália pelo derrube por Hanói do regime genocída de Pol Pot no Cambodja, desgraçando-se com a queda do Xá no Irão no início de 1979 e a invasão soviética do Afeganistão no final do ano.
Guerra Fria, como período histórico entre o final da II Guerra Mundial, em 1945, e a queda do regime soviético e seus satélites no Leste da Europa e Mongólia, em 1989, poderá definir-se como um sistema em que as principais potências definiam as suas políticas externas em função de poder militar e confronto ideológico bipolar dominado por Washington e Moscovo.
Tal é o entendimento de um dos maiores especialistas na matéria, o norueguês Odd Arne Westad, explanado na súmula essencial "A Guerra Fria – Uma História do Mundo" (2017) acabado de publicar por "Temas E Debates/Círculo de Leitores", que frisa, também, o conflito ideológico entre messianismos capitalista e comunista como essencial para apreender um período marcado por transformações radicais como a descolonização ou revivalismos religiosos.
O catedrático de Harvard não ignora, naturalmente, as dinâmicas criadas por conflitos bipolares que obrigam a alinhamentos por parte das demais potências.
Um registo histórico que evoca, por exemplo, os primeiros duelos à escala global com exacerbada dimensão religiosa protagonizados pelas coroas de Portugal e Espanha e a República dos Países Baixos no início do século XVII.
O historiador inglês Charles Boxer referiu-se, por sinal, ao conflito entre Lisboa e Amesterdão no século XVII como a primeira guerra disputada a nível mundial, saldando-se por vitória portuguesa no Brasil e Angola e derrota, ante a Companhia das Índias Orientais, em Ceilão e Malaca, salvaguardando a nóvel dinastia dos Braganças a possessão de Macau.
A bomba
A capacidade de destruição mútua que condicionou, em última razão de Estado, a acção da URSS e EUA na Guerra Fria mantém-se tão presente quanto tinham em vista Stalin ou Truman no dealbar da era nuclear.
Na guerra da Coreia (1950-53), Harry Truman e Dwight Eisenhower descartaram o uso táctico de armas nucleares contra a China, mas a proliferação acentuou a imprevisibilidade da "paz nuclear" à medida que se acumularam os arsenais atómicos de Londres (1952) – com aquiscência de Washington –, de Paris (1960) – à revelia dos Estados Unidos – , de Pequim (1964) – a contragosto de Moscovo – , de Israel (1966) com conivência de França e Estados Unidos.
Índia, em 1974, e Paquistão, 1998, tornaram-se, também, potências nucleares com capacidade de destruição mútua, num conflito vincadamente bilateral desde a partilha do Raj em 1947, marcado por guerras em 1965, 1971 e 1999.
Ainda antes de Pequim ascender a potência nuclear, Índia e China travaram uma guerra nos Himalias em Outubro e Novembro de 1962 que coincidiu com a crise dos mísseis de Cuba, a pior ameaça à paz durante a Guerra Fria.
A guerra israelo-árabe de 1973 assinala outro momento em que um confronto regional ameaçou uma escalada mais grave do que o rol de guerras civis ou regionais, golpes e magnicídios, massacres e opressões.
As chacinas de Suharto na Indonésia em 1965 ou invasão de Timor-Leste em 1975, o apoio ao apartheid sul-africano, o golpe de Pinochet no Chile em 1973, a repressão soviética na Hungria em 1956, na Checoslováquia em 1968, a imposição de lei marcial na Polónia em 1980-81, assinalam horrores típicos da Guerra Fria.
Um ameaçador transe final ocorreu em 1983 com a liderança de Yuri Andropov a encarar como ameaça de ataque imediato os exercícios militar da NATO, Able Archer 83.
Westad refere esta conflitualidade e a invulnerabilidade estratégica obtida por Pyongyang ao testar a sua primeira bomba atómica em 2006, reforçando o potencial destrutivo contra Seul, posteriormente ampliado ao Japão e Guam, demonstra o cunho letal do legado da Guerra Fria.
Uma grande ilusão
O historiador norueguês considera, no entanto, que a emergência de um mundo multipolar, acelerada pela desagregação do bloco soviético, implica abandonar quadros de referência próprios da Guerra Fria.
Argumenta Westad que China e Rússia estão "bem integrados no sistema mundial capitalista" e acrescenta que não se mostram dispostos a "instituir um conflito ideológico global ou sistemas de aliança militarizados. Serão rivalidade que, certamente, poderão levar a conflitos, ou mesmo a guerras localizadas, mas não do tipo da Guerra Fria".
O publicista inglês Norman Angell, arguindo razões para o Kaiser Guilherme II não contestar a hegemonia britânica, adiantava razões similares num livro "A Grande Ilusão", lançado em 1909 e, contudo, tudo ruiu no Verão de 1914.
Westad, eventualmente, subestima a projecção de poder que o crescimento da China implica, agravado pela extrema fragilidade do regime devido a insanáveis constragimentos demográficos e ecológicos, e, por certo, relega para um limbo meramente utilitarista as exortações ideológicos.
É um erro porque a endoutrinação ideológica é essencial à legitimidade do regime comunista chinês, tal como as tiradas marxistas-leninistas funcionavam como auto-ilusão e má-fé no sovietismo, ou o chauvinismo nacionalista russo e conservador sustém o putinismo.
Poderes ideológicos
O sistema de poderes da Guerra Fria pode ser dado como acabado, mas a luta ideológica persiste, legitima e mobiliza por mais ridículas que possam parecer tais pretensões.
Pierre Hassner, o grande especialista de relações internacionais, francês de origem romena recentemente falecido, considerava que uma maior heterogeneidade de poderes afecta "a própria natureza dos actores: o seu carácter estatal ou não-estatal, nacional, subanacional ou transnacional, sua cultura de guerra ou, pelo contrário, a aposta na busca do bem-estar. As distinções clássicas entre grandes e pequenas potências, entre público e privado, interior e exterior desvanecem-se."
Com a proliferação de agentes na cena internacional, a bipolaridade, característica de um momento único do pós-guerra a partir do final da década de 40, terá deixado de fazer sentido, mas a mobilização e o activismo ideológico, legitimando regimes, e o poder de ofensiva letal revelam-se, ainda e sempre, essenciais e determinantes.
Será outra Guerra Fria e vingará sempre como pugna de poderes ideológicos.
Jornalista