Opinião
Craxi, Sócrates e outros
O céu é o limite para o acumular de casos insepultos de abuso de poder e confiança, corrupção, gestão danosa, branqueamento de capitais, fraudes fiscais, mas, por vezes, há um momento em que tudo fica em causa.
Uma mão-cheia de processos envolvendo gentes da política, negócios e finança, ante a lentidão, opacidade, frequente ineficácia e insuficiências das investigações e do sistema judicial, coincide com um inesperado realinhamento partidário.
Delações e imputações escabrosas para fugir a responsabilidades e evitar o pior caracterizam processos do calibre BES, Operação Furacão e Operação Marquês, tendem a agitar esqueletos nos armários, e cruzando-se com manobras políticas de alto risco podem desencadear terramotos.
De repente, não mais do que de repente
A derrocada da ordem política que imperava em Itália desde a queda do fascismo é um exemplo de descalabro brusco e reestruturação radical do sistema partidário provocados por bloqueios institucionais e dinâmicas de contestação interna.
A 14 de Fevereiro de 1992 a polícia surpreendeu Mario Chiesa, um dos homens fortes do Partido Socialista em Milão, a receber sete milhões de liras de um empresário num trivial acto de corrupção.
A denúncia da existência de contas bancárias na Suíça por parte da ex-mulher de Chiesa e as confissões deste implicando camaradas que o tinham repudiado desencadearam uma avalancha.
Bettino Craxi, primeiro-ministro entre 1983 e 1987, figura central nos arranjos com a Democracia Cristã (DC), republicanos, sociais-democratas e liberais, ao ver-se alvo das primeiras acusações que atingiam em cheio o PS jogou tudo no regresso à chefia do governo nas eleições de Abril.
O fugitivo
A manobra falhou, pois o Partido Democrático da Esquerda, um dos herdeiros do Partido Comunista autodissolvido em 1991 ano da desagregação da URSS, conseguiu 16%, atrás da DC (30%) e à frente do PS (14%).
Os 9% da Liga Norte de Umberto Bossi na votação para a Câmara de Deputados revelaram, ainda, a força renovada de movimentos regionalistas com veleidades separatistas.
O presidente democrata-cristão, Oscar Scalfaro, optou pelo socialista Giuliano Amato para suceder a Giulio Andreotti, a eminência parda da DC.
Para Craxi sobrou uma imunidade parlamentar cada vez mais preciosa à medida que choviam acusações de corrupção no quadro das investigações "Mani pulite" ("Mãos limpas").
Ardiloso e arrogante, o milanês defendeu-se na Câmara acusando os demais deputados de hipocrisia ao alegar que os financiamentos ilegais eram prática comum, mas o terreno fugia-lhe debaixo dos pés.
Um decreto de Amato para amnistia parcial de crimes de corrupção foi rejeitado pelo presidente em Março de 1993 e o chefe do governo demitia-se em Abril depois de um referendo rejeitar o sistema vigente desde 1946 de representação parlamentar proporcional.
Craxi, traído pela sua truculência e estilo de vida sumptuoso, viu-se privado de imunidade quando o novo Parlamento tomou posse em Abril de 1994 e, em Maio, na iminência de lhe ser apreendido o passaporte, fugia para a Tunísia.
Da sua vivenda em Hammamet, onde veio a falecer em Janeiro de 2000, Craxi viu-se condenado com sentenças transitadas em julgado a 10 anos de prisão efectiva.
Sobre as ruínas da DC e do PSI, um velho parceiro de Craxi em Milão, Silvio Berlusconi, tinha-se, entretanto, imposto ao triunfar nas eleições de Março de 1994, as primeiras por sistema misto, à frente da coligação Forza Italia, agregando a Liga Norte.
O processo de todas as taras
O penoso estado da justiça em Portugal pouco tem a ver com o activismo dos procuradores italianos da década de 1990.
O caso Sócrates, por exemplo, evidencia fugas sistemáticas de informação da parte da Procuradoria, violações cruzadas de um regime caduco de segredo de justiça, inépcia comunicacional de juízes que se escusam a elucidar atempadamente decisões de impacto público.
Acresce a restrição por prazo indeterminado da liberdade de informação das publicações da Cofina quanto ao "teor noticioso de quaisquer elementos de prova constantes do processo de inquérito".
O juízo moral sobre o indecoroso comportamento do ex-primeiro-ministro pode e deve ser exarado desde já independentemente da eventual prova dos crimes pelos quais está indiciado.
Ao contrário de Craxi, primordialmente criminoso por motivos políticos e subsidiariamente corrupto em proveito próprio, Sócrates moveu-se na política para provimento de sua pessoalíssima gula e abastança.
A morte política de Craxi foi coroada com uma chuva de moedas e o acenar de notas quando tentava sair do hotel onde habitualmente se alojava em Roma.
Foi a 30 Abril de 1993, e para Sócrates talvez venha a sobrar o voltear de fotocópias à porta de algum restaurante de luxo, mas o seu julgamento, tal como os demais grandes processos, tem implicações políticas sobre o funcionamento da justiça, de entidades reguladoras, do que valem conivências entre empresas, instituições do Estado, deputados e governantes.
Por ironia, António Costa ensaia nesta conjuntura uma manobra de partilha de poder com putativos aliados comunistas e da extrema-esquerda à revelia de compromissos externos a que o Estado português está obrigado por tratados dificilmente renegociáveis a curto prazo, pondo em causa a própria identidade do seu partido.
À desordem política que aí vem junta-se a lama que os processos da justiça vão arrastar.
Jornalista