Opinião
Angola: cortar a direito
Árbitro e decisor em derradeira instância, o presidente de Angola tem, consequentemente, de tomar posição e assumir atitudes para provar que, acima de tudo, defenderá os interesses da cúpula do poder e dos negócios.
São literalmente "incompreensões ao nível da cúpula" que levam José Eduardo dos Santos a denunciar o acordo de princípio acertado em 2010, em Luanda, com Cavaco Silva para o desenvolvimento de uma parceria estratégica luso-angolana.
A indefinida e adiada parceria deveria servir para reforçar a cooperação estado a estado, promover contactos e projectos bilaterais entre instituições, empresas privadas e cooperativas, além de facilitar a circulação de pessoas, bens e capitais.
Apesar das aplicações financeiras em Portugal terem continuado a processar-se a bom ritmo – sobretudo nas telecomunicações, energia e banca –, legitimando a riqueza recém-acumulada dos investidores angolanos, uma questão política inquinou a relação.
Investigações judiciais sobre altas personalidades como o procurador-geral João Maria de Sousa, o ministro de estado e da coordenação económica Manuel Vicente ou o general Manuel Hélder Vieira Dias "Kopelipa", ministro de estado e chefe da casa militar do presidente, nunca foram travadas pelo poder executivo – "ao nível da cúpula" S. Bento e Belém – como ainda acabaram tornadas públicas.
A deplorável, vergonhosa e ilegal prática de fugas de informação e violação reiterada do segredo de justiça no DCIAP deu pretexto a críticas de articulistas e políticos de Luanda sobre difamação e intimidação de cidadãos angolanos e a perversão do estado de direito em Portugal.
O presidente das elites capazes
Manuel Vicente anunciou em Maio do ano passado que o investimento de estado em Portugal deixara de ser prioritário já que importava privilegiar o mercado angolano.
A participação da "Sonangol" no BCP, visando a criação de uma plataforma financeira para suportar o crescimento da empresa, fora um dos objectivos atingidos numa fase inicial que apostara forte em Portugal e, referia também Vicente, convinha diversificar as aplicações directas do estado.
Ao capital privado caberia, assim, definir opções de investimento em Portugal e de parcerias em Angola com empresas lusas, mas, na realidade, a imbricação da elite de negócios e da elite do poder em Luanda é tal que a distinção acaba por ser irrelevante.
É essa a razão que sustenta as tiradas nacionalistas no discurso de Eduardo dos Santos à Assembleia Nacional sobre o Estado da Nação, denunciando a injustiça de empresas e bancos estrangeiros que "levam biliões" de Angola ao mesmo tempo que Luanda vê serem qualificadas como corruptas as suas "elites capazes" que têm amealhado justos pecúlios.
Ora, para dispor sem restrições do pecúlio, ou cúmulo de activos – nervo da política e da guerra conforme aprenderam em longos anos de combate os vencedores da guerra civil angolana – , importa dispor de imagem impoluta e agir sem constrangimentos ou ameaças legais.
O risco de processos judiciais inquinando a imagem de pessoas e do estado é altamente prejudicial aos equilíbrios de poder em Luanda e ao presidente cabe atalhar a direito sempre que a ameaça ronde os mais próximos e influentes.
A prová-lo estão o "Angolagate", envolvendo gente da alta roda política e negocista francesa pela venda ilegal de armas soviéticas a Luanda entre 1993 e 1995, ou o reconhecimento no ano passado nas páginas do "Financial Times" por Manuel Vicente, Kopelipa e o general Leopoldino Fragoso do Nascimento da sua participação na "Nazaki Oil & Gas" que se associou em 2010 à "Cobalt International Energy" de Houston para a exploração da concessão dos blocos petrolíferos 9 e 21.
Voltará a correr o marfim
Eduardo dos Santos já afastou Marcolino Mouco, João Lourenço ou Fernando Nandó e cerceou ambições de outros putativos sucessores.
No pináculo do poder Eduardo dos Santos, contudo, não tem ainda assegurado que a sua sucessão possa vir a garantir a perservação do justo pecúlio e a rede de influências políticas de interesses patrimoniais de associados e familiares.
Árbitro e decisor em derradeira instância, o presidente de Angola tem, consequentemente, de tomar posição e assumir atitudes para provar que, acima de tudo, defenderá os interesses da cúpula do poder e dos negócios, as "elites capazes" que tanto lhe devem.
Mexe com poder, é político, portanto, o contencioso e ao mais alto nível o estado angolano vêm exigindo desculpas e reparações públicas que, por constrangimento legal, os governantes portugueses não podem expressar.
Rui Machete disse em público o que apenas poderia aventar em privado e gerou tamanha controvérsia interna que acabou bloqueando a diplomacia e dando pretexto à ruptura ansiada em Luanda.
Para o resto, o que Machete em público não disse, mas se sabe à boca pequena, é que bastará a justiça portuguesa continuar inane e ineficaz, manter-se igual a si própria, para tudo acabar em águas de bacalhau e voltar a correr o marfim.
* Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
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