Opinião
A guerra na frente Sul
O massacre de cristãos coptas egípcios perpetrado por jihadistas fiéis ao Estado Islâmico acentuou o caos da guerra civil que assola a Líbia desde a eclosão da revolta em Benghazi e as insurreições tribais que derrubaram o regime de Gadaffi.
Governos rivais, sediados em Tripoli e Tobruk, reivindicam a representação dos antigos domínios otomanos e italianos - as províncias da Tripolitânia (Noroeste), Fezzan (regiões do Sudoeste) e Cirenaica (Leste) -, mas o estado líbio carece de factores de coesão e a proliferação de milícias é a expressão de solidariedades tribais e religiosas.
O regime saído do golpe de 1969 liderado por Gadaffi - que pôs termo ao reinado de Idris à frente do estado independente desde 1951 - reprimiu movimentos islamitas particularmente influentes na Cirenaica, promoveu um sistema crescentemente pessoal de gestão do patrocínio estatal dos proventos do petróleo e refez alianças tribais e clânicas.
Do caos ao crescente verde
Dos combates de 2011 - que levaram à intervenção da NATO e de aliados árabes como o Qatar ou a Jordânia, com contestada cobertura da autorização da ONU a acções militares para protecção humanitária - às eleições de Julho de 2012, as milícias islamitas foram ganhando força.
Alianças de conveniência, invariavelmente de base tribal e clânica, opõem facções alegadamente secularistas (caso das forças de Khalifa Haftar, comandante das tropas de Gadaffi na guerra contra o Chade, fugido ao regime em 1987, e actualmente homem-forte do "governo de Tobruk"), à aliança "Alvorecer Líbio", centrada em Misrata, com apoios em Tripoli, núcleos islamitas e entre berberes.
Milícias islamitas de filiações diversas combatem por conta própria, actuando nas regiões ocidentais salafistas devotos do wahabbismo saudita, enquanto em Misrata proliferam grupos ligados aos Irmãos Muçulmanos.
Os jihadistas dos Combatentes pela Xaria estão activos em Benghazi, Sirte e Derna, e, desde Abril de 2014, o Leste do país confronta-se com bandos do Conselho Islâmico submissos ao Califado proclamado por Abu Bakr al Baghdadi em Raqqa, no Leste da Síria.
Múltiplas identidades e filiações religiosas, étnicas, tribais e clânicas sobrepõem-se, coexistem e conflituam na guerra civil com ramificações pelo Magrebe, nas regiões a sul dos desertos da Líbia - do Mali ao Níger - e enquadramento mais recente, com a proclamação da Vilaiat Barqa, a Província da Cirenaica do Califado de al Baghdadi, nas guerras em curso na Síria e no Iraque.
Impotência e temor
Sem capacidade para envolvimento de forças terrestres, o Egipto e os Emirados Árabes Unidos limitam-se a acções de retaliação aérea em Derna contra os jihadistas responsáveis desde Janeiro pela chacina de 21 coptas, a execução de dois jornalistas tunisinos e o ataque a um hotel em Tripoli que matou cinco estrangeiros e cinco líbios.
Na linha do apoio do Cairo ao governo de Tobruk - putativo vencedor das eleições de Junho 2014 e tendencialmente apostado em conquistar aliados no estrangeiro - contra a frente predominantemente islamita de Tripoli, sustentada pelo Qatar, a diplomacia de Roma chegou a aventar a possibilidade de intervenção militar, mas na ausência de quaisquer aliados fiáveis e objectivos precisos prevaleceu a impotência.
O voto de fidelidade dos jihadistas da Cirenaica ao Califado de al Baghdadi inquietou ainda mais os estados vizinhos, mas a União Africana e a Liga Árabe mostram-se indisponíveis para conduzir sequer actos de mediação para um cessar-fogo depois do falhanço da ONU em convocar um encontro entre representantes das duas partes em Marrocos.
O Califado negro
A luta pelo controlo dos oleodutos e terminais petrolíferos, além das explorações offshore de Jurf e Bouri, combates e violências generalizadas, provocaram mais de 25 mil mortos desde o Verão.
Incerteza sobre a segurança de trabalhadores estrangeiros, a anarquia facilitadora do tráfico de pessoas através do Mediterrâneo, a quebra da produção petrolífera (ronda actualmente os 200 mil barris/dia em comparação com 1,3 milhões barris/dia antes de 2011) e a destruição de infra-estruturas são o contraponto da guerra.
O voto de fidelidade de jihadistas líbios a al Baghdadi pode eventualmente levar à criação de um domínio territorial no Leste do país, à semelhança do ocorrido no Iraque e na Síria, mas, no imediato, prevalece a ameaça propagandística.
O Califado negro suplantou a Al-Qaeda como pólo de atracção jihadista, com o seu culto do martírio, chacina de infiéis e apóstatas, submissão de judeus e cristãos, escravização de pagãos, votos de expansão territorial e combate apocalíptico.
O caos líbio atrairá combatentes e irá contar-se entre mais um dos factores de propaganda para a radicalização jihadista no Magrebe e na Europa.
Jornalista