Opinião
A fatalidade de Pedrógão Grande a Bamako
"Está a arder por causa daquilo que o regime fez, por culpa dos responsáveis do regime e dos eleitores que votaram neles", clamava, vai para doze anos, o historiador Paulo Varela Gomes, enquanto a cinza caía de mansinho sobre o chão que pisava na aldeia de Podentes.
Apocalíptico, dedicado à ficção até a doença o levar esta Primavera, Paulo Varela Gomes, mirando serras e vales em chamas, atribuía a estocada final na arrastada agonia do campesinato aos malefícios do capitalismo predatório sob a Terceira República.
A modernização pelas grandes manchas de pinheiro e eucalipto, arruinando a pequena agricultura, matas cheias de lixo abandonadas à incúria das gentes, eram, escrevia o ensaísta, matéria combustível para a fatalidade que consumia o interior desertificado, envelhecido, empobrecido.
Têm mais verdade do que exagero este lamento e raiva mansa de um desiludido do progresso que abandonara a cidade e levam a pensar no sentido político da fatalidade.
Aquilo que é incontrolável, fruto do acaso a escapar à previsão, condiciona-nos por razões que podem ser atribuídas a limitações do entendimento ou a um superior e soberano caos.
Afora esse imenso universo, que é o sal da vida, vive-se, ainda, noutro mundo de sequências de causas e efeitos que definem a margem de probabilidade de certas ocorrências.
É por isso que na ausência de reforma florestal ou revisão de procedimentos pela maior frequência de picos de calor em zona de cobertura densa é bastante alta a probabilidade de fogos devastadores.
Interesses, preconceitos e vícios alimentam, por sua vez, disputas sobre as cadeias de causalidades acessíveis à compreensão.
Daí que, independentemente de o Estado deter menos de 3% da floresta, dos interesses das indústrias de celuloses em valorizar o seu património ou da inviabilidade de pequenas explorações, exista uma demissão de responsabilidades de sucessivos governos, claudicando na defesa do chamado "bem comum".
Muitas das mortes e prejuízos contabilizam-se, assim, na dimensão política e isso obriga à atribuição e assunção de responsabilidades que não excluem a falta de civismo e sentido comunitário de proprietários florestais.
Não poucos políticos, administradores de bens públicos e privados, agentes do direito e de influências, devem, consequentemente, ser votados ao desprezo.
Sem pressões pelo saneamento político a inacção e ausência de alternativas sérias acentuam, contudo, a degradação do regime democrático, o entorpecimento, brutalização e a ruína do país.
É um fogo subterrâneo.
Noutro episódio expectável numa missão de alto risco, um atentado numa estância turística em Bamako, no domingo, custou a vida a um sargento-ajudante do exército ao serviço da Missão da União Europeia para Formação Militar no Mali.
O ataque de jihadistas de etnia fula que causou a morte de Gil Benido, de um militar malinês e de três civis, ocorreu depois de a UE anunciar financiamento de 50 milhões de euros para uma nova força antiterrorista de 10 mil efectivos agregando militares do Mali, Mauritânia, Níger, Burkina Faso e Chade.
A opção de mobilizar no próximo ano estes efectivos em apoio de exércitos nacionais, de 3 mil militares da missão antiterrorista de França no Sahel e de 12 mil capacetes azuis estacionados no Mali, confronta-se, no entanto, com reticências de Washington quanto a custos e eficácia no terreno.
No final deste mês será altura de renovar o mandato da missão da ONU no Mali estabelecida em 2013 e que já sofreu mais de 120 baixas.
A revolta tuaregue centrada no Norte e incorporando militantes shongais, árabes e fulas alastrou, entretanto, às regiões do centro e Sul propiciando uma alta do bandidismo.
Outras missões da ONU no Congo e na República Centro-Africana revelam-se igualmente frustrantes e as rebeliões étnicas, religiosas e políticas que assolam estados do Sahel extravasaram para a Costa do Marfim, o Norte da Nigéria, Congo e Líbia.
Evitar a desagregação de estados com poder meramente nominal sobre a maior parte dos territórios, populações e recursos, garantir abastecimentos de urânio, obviar a migrações em massa e restringir a mobilização jihadista são os principais objectivos de facto das potências ocidentais, com cobertura da ONU.
A estratégia portuguesa de participar em missões militares da UE e ONU no Mali e na República Centro-Africana visa cobrir riscos de ausência que seriam, com toda a probabilidade, bem maiores.
A margem de erro é imensa e o acaso poderá causar baixas indesejáveis e dificilmente compreensíveis para a opinião pública, mas os decisores políticos e militares têm muito a seu favor.
Nestes terrenos inóspitos e hostis, vale a pena o investimento político, financeiro e militar; é um caso em que, ponderando as probabilidades na medida do possível, talvez seja viável mitigar dados maiores.
É deplorável que as florestas que vão ardendo em Portugal deixem à vista, pelo contrário, um saldo político de irresponsabilidade, incompetência e pusilanimidade.
As mesmas atitudes que aumentam a cada dia a probabilidade da conjugação de imbecis com drones, pistas, aeroportos e corredores aéreos congestionados redundarem noutras desgraças.
Jornalista