Opinião
À bomba chama-lhe um figo
O recurso a armas nucleares tácticas em confrontos bélicos ou em retaliação por ataques não convencionais é cada vez mais corrente na doutrina militar, conforme demonstra a recém-divulgada proposta do Pentágono sobre estratégia de segurança.
Reforçar o arsenal de bombas de baixa potência é um dos principais objectivos da revisão para 2018 do conceito estratégico de manutenção, desenvolvimento e uso de armas nucleares que a cada oito anos, desde 1994, o Departamento de Defesa apresenta ao Congresso e ao Presidente dos Estados Unidos.
A "Nuclear Review Posture" afasta reduções do arsenal operacional, exclui explosões experimentais, abandonadas em 1992, "a não ser que se prove necessário", e advoga a incorporação de bombas de baixa potência para mísseis balísticos de cruzeiro Trident D5 em submarinos para contrariar dispositivos terrestres similares em desenvolvimento pela Rússia.
Dotar os arsenais com mais ogivas de baixa potência - a partir de 10 quilotoneladas, por exemplo, ou acima de 20 quilotoneladas, já além do potencial destrutivo que flagelou Hiroshima e Nagasaki - abre o leque de opções para uso de armas tácticas que podem chegar às 200 quilotoneladas.
A doutrina norte-americana é ameaçadoramente semelhante à cultivada pela Rússia ao incorporar armas nucleares no quadro de operações convencionais e de ciberguerra, excluindo oficialmente o uso letal de meios químicos, biológicos, radiológicos.
Ao abandonar veleidades de redução de arsenais, de acordo com a proposta revelada em primeira mão pelo Huffington Post, vinga em Washington uma tendência que contraria opções de anteriores administrações republicanas e democratas, mas em sintonia com as disposições estratégicas de Moscovo ou Pequim.
O Pentágono alarga, ainda, a possibilidade de uso de armas atómicas à retaliação por ataques não nucleares a instalações militares nucleares de comando e controlo, consolidando o princípio de que, tal como no caso de baixas civis e militares, importa mais a virulência das agressões do que propriamente o meio utilizado.
Assumir eventual retaliação militar nuclear a ataques assimétricos consta, igualmente, da revisão doutrinal e, também neste particular, os estrategos do Pentágono pouco se distinguem de outras potências na Ásia e Europa e dão cordões largos à bolsa.
O orçamento de Defesa terá um reforço superior a 85 mil milhões de dólares no ano fiscal de 2018 e a previsão de manutenção e modernização do actual arsenal nuclear supera 1,2 triliões de dólares nas próximas três décadas, segundo estimativas do Gabinete de Orçamento do Congresso.
Além da retórica desvairada e belicista de Trump confirma-se uma tendência de fundo entre estrategos e decisores norte-americanos quanto à relevância da capacidade e prontidão militares assentes na intimidação e retaliação, incluindo recurso a armas nucleares.
Em contraste desvalorizam-se meios diplomáticos para obviar o agravamento de tensões avivando uma recorrente tradição isolacionista, alheia à cooperação entre Estados, virada para a promoção predominante do interesse nacional, recorrendo pontualmente a intervenções militares no exterior, que leva o nome de Andrew Jackson, um dos mais proeminentes Presidentes da primeira metade do século XIX.
As oscilações doutrinais nos Estados Unidos, em que a discussão pública é, também, mais vibrante e aberta, tendem a enviar sinais contraditórios a aliados, adversários e inimigos e com Trump tudo degenera em ameaça e confusão.
Num contexto de proliferação militar e de assumido uso de armas nucleares em ataque alegadamente preventivo (exemplo do Paquistão face à Índia), em que avultam compromissos muito imperfeitos para suspender programas militares (caso do acordo de 2015 válido por dez anos relativo ao Irão) e fracassos irremediáveis (Coreia do Norte), a banalização do potencial uso táctico de ogivas nucleares revela-se alarmante.
Claudica a prudência quanto a risco de acidente, falso alarme, escalada, interpretação errada de ameaças potenciais ou efectivas, ante cenários de guerra que incorporam um número cada vez maior de hipóteses para recurso a armas nucleares.
É o reverso doutro fracasso ignominioso consumado em 2014.
Kiev desmantelou entre 1994 e 1996 o arsenal nuclear herdado da URSS e em contrapartida, nos termos do tratado de Budapeste de Dezembro de 1994, Rússia, Estados Unidos e Grã-Bretanha comprometeram-se a respeitar a independência, soberania e integridade territorial da Ucrânia.
A Ucrânia foi atacada pela Rússia, a península da Crimeia anexada e, depois disso, quem tem a bomba chama-lhe um figo.
Jornalista