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Reflexões sobre a China

A China nunca teve uma recessão desde 1976, o ano que é normalmente apresentado com o fim da Revolução Cultural, e que representa o início da abertura a um novo modelo económico sob a liderança inicial de Deng Xiaoping.

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Claro que já houve vários anos em que a bolsa chinesa desvalorizou, mas uma recessão propriamente dita, no sentido em que a economia contraiu de um ano para o outro, é algo ausente das estatísticas chinesas. Curiosamente o menor crescimento anual do PIB chinês desde essa altura ocorre em 1989 (4,2%) e 1990 (3,9%), coincidindo com os protestos de Tiananmen de 1989.

 

Muitos questionam a qualidade das estatísticas das contas nacionais chinesas, por boas e más razões. Por um lado só se mede relativamente bem a parte da economia das regiões que mais se industrializaram e que se transformaram numa força exportadora mundial. Por outro lado o alisamento dos dados é tão intenso que as oscilações normais noutras economias do mundo desaparecem nas bases de dados. Finalmente, num país ainda mal compreendido pelo resto do mundo há uma desconfiança sobre o grau de independência das autoridades estatísticas. Ninguém questiona, porém, o extraordinário crescimento económico chinês dos últimos 40 anos.

 

Um outro tipo de razão prende-se com a intensidade do processo de desenvolvimento económico na China. Que se traduziu também numa profunda transformação social com uma industrialização e agora também uma terciarização da economia e criação de empregos no sector secundário e terciário em detrimento do setor primário. Este fenómeno de base tornou as oscilações periódicas no crescimento económico insuficientes para o trazer para um terreno negativo quando a média de crescimento histórico é tão elevada. Isso significa que para os chineses um crescimento de apenas 3% (como o de 1989 e 1990) pode parecer uma recessão, em termos de dificuldades económicas, oportunidades de emprego, ou redução de rendimento médio.

 

Agora que muitos temem que haja uma forte crise financeira e uma recessão na China, maior que todas as oscilações anteriores desde 1976 surgem naturalmente muitas interrogações, que no essencial são de 3 tipos.

 

O primeiro e mais básico é se uma recessão na China, na sequência do crash da sua bolsa simbolizado pela queda da passada segunda feira, pode ou não trazer a economia mundial para uma nova recessão. Isto numa altura em que se esperava uma espécie de normalização económica na sequência da crise financeira mundial e da Grande Recessão de 2008. Há sete anos. Muito tempo mesmo. O abrandamento para o resto do mundo parece mesmo ser um risco, e os mecanismos de contágio possíveis são múltiplos. Mas as economias desenvolvidas podem escapar às piores consequências de uma forma que não foi possível com a crise do sub-prime americana.

 

O segundo risco é de outra natureza. Essencialmente financeiro. Ou seja se houver uma grave crise financeira na China os países desenvolvidos e as suas instituições não terão capacidade para ajudar a resolver a situação (tal como não tiveram no caso japonês) ao contrário do que foi possível fazer com inúmeras economias grandes mas de menor dimensão (Rússia, Indonésia, México, e Brasil, por exemplo). Ou seja, uma eventual  crise financeira grave na China seria demasiado grande para ser resolvida de fora e é quase impossível saber se as instituições chinesas, incluindo o seu governo, banco central e sistema financeiro, têm capacidade financeira e experiência suficiente para lidar com um problema grave. Neste caso os riscos serão de outra natureza e a questão que se colocará será sobre o grau de exposição do resto do mundo ao sistema financeiro chinês. Mais riscos para o sistema financeiro americano e europeu bem como mais desafios para os sues bancos centrais.

 

Mas o principal risco parece-me obviamente ser o político. Nas democracias ocidentais os povos lidam muitas vezes com as recessões mudando de governo e do partido que o apoia. Isso é feito de forma pacífica, ordeira e democrática através de eleições periódicas. Os problemas sociais são debatidos no espaço público e todos têm o direito de vocalizar a sua frustração e sentimento de injustiça. Sem violência ou destruição de propriedade e ativos.

 

Em parte a Revolução Americana foi uma resposta a um aumento impopular de imposto que a Inglaterra queria impor às suas colónias. Esse aumento de impostos visava cobrir os problemas financeiros da coroa britânica. Mas as colónias não tinham representantes no parlamento inglês. É normal que não quisessem pagar a conta. Também a revolução francesa surgiu na sequência da convocação dos estados gerais, que entre outras coisas deveriam decidir aumentos de impostos. Numa monarquia absolutista é difícil mudar de governo sem uma revolução.

 

Esta é uma inquietação natural no caso da China. Saber se o sistema é suficientemente flexível e legítimo para acomodar a grande insatisfação que acompanha as graves crises económicas e financeiras. E como o sistema político e institucional chinês não está habituado a ter recessões, nem nas estatísticas oficiais nem na realidade, não há propriamente um período passado posterior a 1976 que possa ajudar perceber o que se poderá passar.

 

O risco chinês neste momento não é por isso apenas de mercado de capitais, económico ou financeiro. É essencialmente um risco político. Isso é bem mais preocupante que a forte descida e volatilidade que se tem observado na bolsa chinesa em agosto. E transcende o debate sobre as políticas orçamental , monetária e cambial que deve ser praticada na China. Será por isso normal que a situação económica na China ultrapasse o tema da Grécia na agenda mediática internacional, e mesmo nacional, durante os próximos dois anos.

 

Professor na Universidade Católica Portuguesa

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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