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Para todos os que sofrem de "'jet lag' social" 

"Concordo, mas não acordo" dizia um colega meu, sempre que era repreendido por chegar tarde. Fazer de noctívagos, madrugadores é uma batalha destinada ao fracasso.

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Não é o facto de as pessoas estarem vestidas e a andarem de um lado para o outro às primeiras horas da manhã que me espanta - que se levantem da cama porque são obrigadas a isso, parece-me lamentável, mas perfeitamente entendível. Aquilo que tenho dificuldade em compreender é que falem, digam duas frases seguidas com o mínimo de sentido, façam planos, desenhem estratégias, dêem ordens, estejam, em suma, realmente despertas. 

 

Cá para mim ser madrugador, tal como ser noctívago, resulta de um traço hereditário, mas daqueles que corresponde a um gene dominante que nada, nem ninguém, consegue calar. Nem mesmo o superior hierárquico mais ameaçador.

 

Só que enquanto a vida está feita para os primeiros, os pobres mochos frustrados são indesmentivelmente quem mais sofre, vítimas de ataques cruéis à sua natureza. Começa logo na escola, depois no liceu, para se perpetuar tragicamente ao longo de toda a sua vida profissional.

 

É claro que as coisas correm melhor quando têm a lucidez de procurar empregos cujos horários se coadunam com a sua dificuldade de abandonar a almofada, mas a escolha nem sempre é possível. E os pobres noctívagos lá vão aprendendo com o tempo, e muito levar nas orelhas, a viver com menos horas de sono, arrastando-se para o local de trabalho a (mais ou menos) tempo e horas, pelo menos até ao dia em que ascendem a um lugar de comando e podem vingar-se dos que lhes infernizaram as manhãs até aí.

 

Felizmente houve um cronobiologista alemão, Till Roenneberg, da Universidade de Munique, que decidiu vir em socorro dos noctívagos, anunciando um novo fenómeno, o "'jet lag' social", termo que deve ser utilizado contra todos aqueles que duvidam das dificuldades insuperáveis do empregado que não pica o ponto a tempo e horas. O conceito descreve a tragédia das criaturas obrigadas a negar o seu "relógio biológico", e a regerem-se pelo "relógio social" (substituir por relógio do marido/dos filhos/do patrão). Estimou que entre um e outro há um intervalo médio de duas horas, com consequências tenebrosas, provocando doenças como obesidade, diabetes, todo o tipo de vícios (do tabaco à droga!) e, claro, muita irritabilidade e mau feitio.

 

Mas se nem com esta história consegue calar os críticos, recomendo-lhe que tire então da manga a "inércia do sono", nome dado, em 1976, à sensação de atordoamento que se segue ao despertar, e que pode ir de uns escassos minutos a quatro horas. Por uma questão de sobrevivência (pode ser preciso acordar e fugir), as áreas do cérebro que controlam as funções básicas acordam relativamente depressa, nem que seja porque batemos com a cabeça no candeeiro ou, desorientados, espetamos a escova de dentes num olho, mas aquelas que permitem tomar decisões mais complicadas, levam mais tempo a dar de si. Este entorpecimento matinal nalgumas pessoas é mais lento, talvez porque durante o sono acumulem mais adenosina e melatonina (umas palavras difíceis podem dar-lhe jeito para explicar atrasos).

 

Caso os seus interlocutores pareçam quase convencidos, recorde-lhes ainda que a estes pobres coitados, entre os quais se inclui, está também interdito um acordar por ordem de despertador, porque se despertar a meio de um ciclo de sono profundo não faz bem a ninguém, muito menos a quem já tem dificuldade em abrir os olhos.

 

Finalmente, para fechar em beleza, cite de novo Roenneberg: "O hábito de dormir e acordar em horários 'artificiais' pode ser o comportamento de maior risco na sociedade moderna."

 

Se apesar de tão ponderosa e sustentada argumentação não o autorizarem a entrar dez minutos antes do toque para o almoço, opte pela estratégia do meu amigo João Fragoso Mendes, que no Diário de Notícias, nos anos 1980, desconcertava toda a gente com um: "Concordo, mas não acordo!" Boa sorte.

 

Jornalista

 

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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