Opinião
Os crimes bons e os crimes maus
Neste novo regime, se o homem bate na mulher adúltera, não faz mal, porque o crime pior era o dela. Decididamente, queixamo-nos do populismo às segundas, quartas e sexta, e nos outros dias praticamo-lo.
Considerações sobre um hacker a partir de uma canoa ao largo da praia do Alvor, antes do salvamento pelo mais exímio nadador-salvador da costa algarvia.
1. Depois de um ano e meio de prisão preventiva, as autoridades e Rui Pinto acordaram no preço. O hacker, frustrado na sua tentativa de conseguir emprego no setor privado, porque a Doyen não aceitou a tentativa de extorsão, negociou um lugar no setor público. Está certo.
2. Em lugar de queimarem o material roubado, numa óbvia luta contra o desperdício, a PJ e o MP decidiram que mais valia aproveitá-lo, apressando-se a garantir que não será um uso direto, mas indireto (em lugar de irem a casa de X e Y, vão apanhá-los no café onde todos os dias tomam o pequeno-almoço). Rui Pinto, agora diligente funcionário, atirou-se ao trabalho, e desencriptou tudo de uma assentada. O diretor da PJ congratulou-se porque, afinal, desta vez foi possível vencer o sistema português que, segundo defende, “desincentiva a colaboração e não permite uma resolução mais rápida dos processos”. Ah, então é por isso.
3. Daqui no mar alto, vejo também imensas utilidades para o produto de outros crimes. Por exemplo, queimar a droga apreendida é escandaloso, quando o dinheiro da sua venda podia reverter para uma instituição de caridade ou, sei lá, financiar a própria polícia que, com mais recursos, tornar-se-ia mais eficaz. Decididamente é uma seca o princípio de que os fins não justificam os meios. Já assim pensavam os inquisidores do século XVI e o Barbieri Cardoso da lusa PIDE/DGS. Tal como hoje afirma a PJ também eles garantiam usar “todos os meios legais ao seu dispor para a descoberta da verdade...”
4. É verdade que alguns acusados de nomes igualmente sonantes não tiveram direito a aguardar o julgamento em liberdade, porque a Justiça temia continuação de atividade criminosa em lugares tão apetecíveis como o Burkina Faso ou a Guiné Equatorial, mas é fácil de compreender que é muito mais complicado continuar a cometer crimes a partir do wi-fi de um centro comercial. É possível que a justiça tenha confiado na eficácia das sessões diárias dos Hackers Anónimos, mas está à vista que o método dos doze passos não está a funcionar, ou que o rapaz não foi lá. Incapaz de resistir ao vício, na primeira oportunidade o novo “funcionário público” usou o Twitter para dar lições de moral.
5. Registo também a nova distinção entre crimes bons e crimes maus — sugiro mesmo que o “Bom Crime” passe rapidamente a ser incluído na Constituição da República. Afinal o Robin dos Bosques não era um herói? Desde que a coisa aparente constituir um roubo aos ricos para dar aos pobres, está tudo bem. Sugere-me um outro exemplo, mas deve ser certamente do sol na cabeça: neste novo regime, se o homem bate na mulher adúltera, não faz mal, porque o crime pior era o dela. Decididamente, queixamo-nos do populismo às segundas, quartas e sexta, e nos outros dias praticamo-lo.