Opinião
O poder da lisonja
Porém, nem tudo é mau na lisonja, diz o filósofo Alain de Botton. Quando nos gabam um feito como se já o tivéssemos concretizado, ou dão como assegurada uma conquista, temos um estímulo acrescido para realizar a profecia.
Em teoria, todos os odiamos. Aos lisonjeadores, quero dizer. Aquelas pessoas que usam as palavras para chegarem onde querem, sem escrúpulos em dourar a mentira transformando-a num presente envenenado. Uma mentira de que nos querem tornar coniventes, numa forma sofisticada de corrupção: afagam-nos o ego e em troca nós cedemos. Às vezes, nem precisam de dizer nada, basta o olhar enlevado com que nos escutam, a gargalhada no sítio certo, e está feito. Odiamo-los em teoria, dizia eu, porque na prática — e se for bem feita — torna-se irresistível. E embora sejamos suficientemente lúcidos para entender a jogada e rápidos em tomar o lisonjeador por quem é, na prática há sempre qualquer coisa que fica. Uma semente que, na hora certa, está pronta a germinar. A favor dele.
Afinal, como é que podemos desqualificar como mentecapto e desprezível uma pessoa que teve a capacidade de detetar em nós aqueles magníficos predicados? Que viu mais longe, detetando o ouro luzidio do nosso coração, admirando a nossa estonteante beleza, perspicácia ou inteligência, quando mais ninguém a via? Poderá ser lambe-botas, demasiado “yes, man/woman” para o nosso gosto, mas não conseguimos deixar de reconhecer que há ali potencial.
A arte do lisonjeador é imensa. Possui uma visão raio-x que lhe permite perceber a opinião que, bem escondida, temos de nós mesmos, captar o retrato-robô da pessoa que ansiamos ser. Porque só vamos aceitar os seus elogios empolgados se forem ao encontro das qualidades que acreditamos ter. Um mau lisonjeador desperdiça tempo e paleio se nos gaba a altura (quando somos baixos), a facilidade do discurso (se gaguejamos), a fluência da escrita (se tropeçamos na ortografia), ou a magnanimidade (se nos orgulhamos de cortar cabeças sem pestanejar). Mais medíocre é ainda se ressalta características que temos para nós como defeitos. É desastroso o lisonjeador que nos gaba a riqueza (se fazemos gala em não a exibir), a capacidade de pôr os outros na ordem (se odiamos autocratas), a forma como conseguimos escapar a cumprir determinada tarefa (quando abominamos os indigentes). Esses morrem pela boca, como o peixe. Mas os outros, os verdadeiros artistas, percebem exatamente quais são os atributos que sonhávamos ter, que suspeitamos ter, e quando acertam no alvo, estão garantidos.
Quanto menos praticarmos o autoconhecimento, quanto mais iludidos estivermos acerca de nós mesmos, mais facilmente nos tornamos presas nas suas teias. Simplesmente, suspeito de que nas empresas e na política, quanto mais alto alguém sobe mais suscetível se torna às línguas adocicadas daqueles que os rodeiam – quando é preciso tomar uma decisão difícil e o futuro parece incerto, é fácil a sedução de quem nos assegure de que estamos a agir bem. Consumidos pela responsabilidade e pela urgência da escolha, quem não prefere ouvir enaltecer as suas capacidades e visão do que ser sobrecarregado com dúvidas e críticas, facilmente desclassificadas como produto da inveja? Admira alguém que seja mais fácil seguir quem diz que vamos no bom caminho do que dar ouvidos aos “velhos do Restelo”? A conta vem a seguir.
Porém, nem tudo é mau na lisonja, diz o filósofo Alain de Botton. Quando nos gabam um feito como se já o tivéssemos concretizado, ou dão como assegurada uma conquista, temos um estímulo acrescido para realizar a profecia. Superamo-nos para que as palavras do lisonjeador não sejam vãs. É verdade que entre a constatação do facto e o facto em si existirá sempre um considerável jet lag, mas se acabarmos por ser melhores pessoas por causa disso, abençoada lisonja.