Opinião
Mesmo que fossem nossas filhas
Carta Aberta ao Tribunal Constitucional perguntou "E se fossem vossas filhas", como se direitos fundamentais pudessem depender da vivência pessoal do legislador.
Ler o Acórdão do Tribunal Constitucional sobre a Lei da Procriação Medicamente Assistida devia ser um exercício obrigatório para o comum dos mortais. O original, não os retalhos a gosto de cada jornalista ou colunista de opinião. Estou a falar a sério. Permite-nos perceber que, afinal, as nossas questões não eram tão despidas de sentido como nos queriam fazer crer. Valida-nos dúvidas e inquietações, ajuda-nos a equacioná-las, e mesmo quando a decisão final ficar aquém, ou mais além, do que pessoalmente esperávamos, leva-nos a respirar de alívio: não somos os únicos a reagir perante este admirável mundo novo que nos querem servir de bandeja.
Sinceramente, serve de antídoto para anos de exploração mediática de emoções, de verdadeiro "bullying" sobre quem se atrevia a discutir a maternidade de substituição, a indiferença com que desvalorizavam nove meses de vida de um bebé no útero, ou se perguntou que sentido fazia que as crianças concebidas com recurso a óvulos e sémen de dadores fossem privadas do direito a conhecerem a sua identidade biológica, direito assegurado a todas as outras.
Funciona, também, como aviso de que temos de confiar mais na nossa intuição e experiência como seres humanos, em lugar de nos deixarmos confundir por jargão técnico, cheio de termos assépticos (já reparou que ninguém fala em "mães", mas sempre em progenitoras e maternidades de substituição, juntando-lhe uns gâmetas e uns homólogos para compor o ramalhete?); de que não nos devemos amedrontar com a acusação de que só gente muito retrógrada ou preconceituosa se choca quando a pessoa é objeto, e não sujeito, e os fins parecem justificar todos os meios.
Não é tarefa fácil. Basta assistir à pressão colocada sobre os juízes para o entender. "E se fossem vossas filhas?", perguntava uma carta aberta ao tribunal, como se decisões sobre direitos fundamentais pudessem depender da emoção ou da vivência pessoal de um legislador. Ou ter como objetivo caprichoso ou ideológico minar a felicidade dos demais.
Não é fácil quando aparentemente o sonho está ao alcance da tecnologia, quando se fala de um sofrimento tão profundo e magoado como o que acompanha a infertilidade, que merece toda a compaixão.
Mas, torna-se porventura um bocadinho menos complicado se, como sociedade, formos fiéis aos interesses das crianças, antes de mais. Se assumirmos, com coragem, que não podemos fazer tábua rasa dos direitos das mulheres tão arduamente conquistados. Esta decisão, que resultou, é preciso dizê-lo, da iniciativa de 30 deputados que não se conformaram, dá-nos o exemplo.
Nota: Digitei "maternidade de substituição" no Google e o primeiro resultado foi, nada mais nada menos do que um anúncio a uma "OpenSurrogacy Lisboa 2018", no próximo sábado, num hotel da cidade. A agência pretende explicar como alugar uma barriga na Ucrânia ou na Georgia. A lei é clara: quem promover, por qualquer meio, a celebração de contratos de gestação de substituição (...) é punido com pena de prisão (artigo 39.º LPMA). Nos "Dias do Avesso", reagimos, como reajo aqui. Aparentemente já foi apresentada queixa-crime ao MP. Aguardemos.
Leia aqui:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180225.html
Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico
Jornalista