Opinião
As metástases da depressão
O rol de hipóteses que vão sendo enumeradas é, em muitos casos, arrepiante, revelando mais sobre quem as enuncia do que aquilo que pode passar pela cabeça de alguém compelido a matar-se.
A morte de Pedro Lima e a forma como morreu deixou-nos a todos sem ar, mas falar do impacto que teve sobre quem, como eu, o conhecia apenas “de longe”, provoca-me um desconforto enorme, como se usurpasse um direito que pertence exclusivamente à mulher e aos filhos, aos pais e aos amigos que realmente o conheciam e amavam. Esses sim, sofrem uma perda e um tormento que não se apagará nem com o luto, nem com o tempo.
Apesar disso, sinto um impulso incontornável de o fazer, porque mais uma vez as notícias e os comentários nas redes sociais deixam claro que continuamos surdos a tudo o que repetidamente nos ensinam sobre a depressão, o suicídio, a doença mental.
Aparentemente, entra-nos por um ouvido e sai-nos pelo outro, num mecanismo de defesa que insiste em encontrar uma relação de causa-efeito em tudo o que acontece em nosso redor, por mais absurda que essa correlação possa ser. Uma explicação racional para aquilo que supera o nosso entendimento (se tivemos a sorte de não conhecer o poder da depressão profunda), para sossegar a angústia que desencadeia a falta de resposta ao insistente “Mas, porquê?” é a pergunta que persegue a família e os amigos, mas que assola também quem está de fora, mais ainda se quem morreu é uma personalidade pública que as pessoas têm a absurda ilusão de conhecerem.
O rol de hipóteses que vão sendo enumeradas é, em muitos casos, arrepiante, revelando mais sobre quem as enuncia do que aquilo que pode passar pela cabeça de alguém compelido a matar-se: procuram-se avidamente problemas financeiros ou conjugais, desavenças familiares ou frustrações profissionais, chegando ao absurdo de intitular notícias com a ideia de que a impossibilidade de construir uma “casa de sonho” pode levar alguém a acabar com a sua própria vida. Muitas vezes, semanas depois, há uma nova onda de reações de gente que se sente “traída”, e riposta atacando, zangando-se com a vítima porque supostamente não foi suficientemente corajosa, “cedeu” à facilidade, “fugiu” aos problemas, foi “egoísta”. Como podemos evitar ser uma delas? Como podemos encontrar as respostas que procuramos, sem embarcar em pré-juízos, como podemos defender-nos, a nós mesmos e àqueles que amamos, das consequências letais de uma depressão tão profunda?
Já aqui escrevi sobre a “Escuridão Visível”, um livro de William Styrton (Prémio Pulitzer e autor de livros como “A Escolha de Sofia”), que eu e a minha irmã Martha traduzimos para português (Livros Horizonte), mas este é o momento de falar de novo nele. Styrton, que só não se suicidou por um mero acaso da sorte, explica-nos nesta sua “Memória de Loucura”, como insidiosamente a doença suga a energia e rouba a esperança, reduzindo a vítima a alguém que ela própria já não reconhece. Compreendemos, também, como persiste o medo e o preconceito contra a doença mental, a ignorância que ainda a rodeia, mesmo entre os técnicos de saúde.
Foi uma notícia no New York Times sobre Primo Levi, em que transparecia a perplexidade, desilusão e até vergonha pelo suicídio de um homem que suportara tanto às mãos dos nazis, como se subitamente se tivesse tornado “fraco”, que levou Styrton a falar da sua doença publicamente. E é ele que nos conta: “A minha indignação foi tão intensa que me senti compelido a escrever para a secção de opinião do Times. A argumentação que propus era bastante linear: a dor de uma depressão grave é completamente inimaginável para quem nunca a sofreu, e mata porque a angústia que provoca é absolutamente insuportável. A prevenção de muitos suicídios será difícil até as pessoas entenderem realmente a natureza desta dor. Graças ao processo de cicatrização que ocorre gradualmente com o passar do tempo — e através da intervenção médica ou, em muitos casos, da hospitalização —, a maioria das pessoas sobrevive, o que pode ser a sua única bênção, mas não devemos acrescentar à legião trágica que se sente compelida a autodestruir-se ainda mais reprovação do que aquela que dedicamos a uma vítima de cancro terminal.”
E continua: “É perfeitamente natural que aqueles que estão mais próximos da vítima de suicídio procurem tantas vezes e tão desesperadamente negar a verdade; a consciência dos juízos de valor dos outros, a culpa pessoal – a ideia de que poderiam ter evitado o ato se tivessem feito isto ou aquilo, agido desta ou de outra forma —, tornam-no provavelmente inevitável. Contudo, o suicida que estava em sofrimento – quer se tenha chegado a matar, feito uma tentativa ou apenas ameaçado cometer o ato – passa muitas vezes, como resultado da negação dos outros, a assemelhar-se a um criminoso.”
A resposta dos leitores do jornal foi avassaladora. Styrton ficou espantado “com o número de pessoas para quem o assunto era tabu, uma matéria de segredo e vergonha”. Teve consciência de que “inadvertidamente abrira a porta de um armário do qual muitas almas estavam desejosas de sair para proclamar que, também elas, haviam sentido o que eu descrevera no papel.” De tudo isto nasceu um livro pequenino, que não deve deixar de ler porque acredito que pode salvar vidas, porque permite às vítimas pôr legendas no seu sofrimento, ajuda infinitamente quem lhes está próximo, e traz conforto às famílias dos que não resistiram.