Opinião
As crianças devolvidas
Prefiro acreditar que serão capazes de estar à altura do desafio se forem mais bem preparados, apoiados e acompanhados antes e depois da adoção, com mais compaixão, mais profissionalismo e menos juízos.
Todos os anos há notícias de primeira página sobre as crianças devolvidas às instituições por casais em processo de pré-adoção ou, mais grave ainda, com uma adoção decretada. Os números fazem os títulos: 67 crianças, nos últimos quatro anos, 7% das adoções desde 2016.
Todos os anos, se aponta o dedo aos pais que cruelmente devolvem a criança, sem apelo nem agravo, minando toda a esperança que puseram no seu futuro. Invariavelmente contam-se histórias do casal que entregou o menino porque o cão sentia ciúmes, ou o devolveu à procedência porque não os deixava dormir nove horas seguidas, tratado como um brinquedo que se vai trocar. Sem remorso, como sociopatas. Ninguém parece estranhar que as equipas que avaliam e selecionam os casais não tenham dado por estas desgraçadas falta de ética e caráter, nem a “inadequação” entre as expectativas do casal e a realidade de uma criança de carne e osso, com uma história pesada de sofrimento e privações. Nem que quem adota pareça preparado apenas com uma predisposição para amar, como dizia uma mãe adotiva, porque o amor esse é uma coisa que só poderá vir depois...
Mas este ano tivemos uma nova acha para a fogueira. Pelo menos eu senti-a assim. Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia, revelou ao Observador que conhece casais que “por motivos fúteis” desistem das crianças em fase de pré-adoção, os seis meses em que a criança já vive com a família, mas a adoção ainda não foi decretada, e que, goste-se ou não (e deva existir ou não), é um período experimental. E refere que considera que quando “o motivo é leviano”, os casais devem ser denunciados à justiça, decisão que já tomou em duas situações para as quais espera uma condenação, que evite que outros embarquem de “ânimo leve” neste processo para o qual, recorde-se, foram rigorosamente selecionados e esperaram, em média, sete anos.
Isabel Pastor é uma mulher dedicada à defesa dos direitos das crianças, que conhece o sistema por dentro e por fora, mas desta vez as suas afirmações provocaram-me desconforto. É que não consigo esquecer a resposta que o juiz conselheiro Laborinho Lúcio me deu quando lhe perguntei, há muitos anos, o que pensava dos números das crianças devolvidas em processo de adoção: “Nada mau comparado com os milhões de devoluções das famílias biológicas”, disse-me.
Num mundo ideal, nenhum casal adotante defraudava as esperanças de uma criança, sabendo ainda por cima daquilo que já sofreu, mas num mundo ideal os pais biológicos das 7.046 crianças e jovens neste momento a cargo do Estado não as teriam negligenciado, maltratado, ou pura e simplesmente sido incapaz de os criar e educar junto de si. E se nos chocam, e bem, as 7 crianças já adotadas e as duas em pré-adoção devolvidas em 2019, o que dizer das 2.498 que só nesse ano deram entrada em instituições, ou das 110 que vieram uma segunda vez devolvidas pela família biológica? E o que nos leva a fazer manchete dos primeiros, e a encolher os ombros com quase indiferença perante os segundos, e enquanto isto ir esquecendo que, ano após ano, a percentagem de crianças em acolhimento encaminhadas para a adoção continua a ser assustadoramente baixa?
Talvez seja ingenuidade minha, mas prefiro acreditar que a maioria de candidatos à adoção não deseja falhar, e muito menos infligir sofrimento à criança porque tanto esperaram. Prefiro acreditar que serão capazes de estar à altura do desafio se forem mais bem preparados, apoiados e acompanhados antes e depois da adoção, com mais compaixão, mais profissionalismo e menos juízos. Pela minha parte estou-lhes imensamente grata.