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A "desconexão profissional" em horário de trabalho 

Julgo que os senhores deputados podiam ir mais longe, defendendo agora o direito à "desconexão profissional" em horário laboral, legitimando uma forma de descanso a que muitos se dedicam com militância.

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Uma nova lei vai proteger os trabalhadores de serem incomodados pelos patrões nas horas de merecido descanso. Nem telefonemas, nem mails, nem mensagens de texto. Acho muito bem. Era o que faltava, presumir que os telefones inteligentes, lá porque permitem que o empregado esteja sempre contactável, se transformem em grilhetas. Por isso, sim, senhor, vamos votar o direito e o dever da "desconexão profissional", com muitas sanções e contraordenações, fingindo que o problema da nação é a falta de leis e não a fiscalização do seu cumprimento. 

 

Suspeito, no entanto, de que esta benévola medida vá trazer graves problemas aos trabalhadores que se pretendem proteger, fazendo jus àqueles que advogam que, muitas vezes, é bem pior a emenda do que o soneto. É que porventura alguém pensou no que será do verdadeiro descanso do comum dos mortais quando deixarem de poder alegar obrigações profissionais para o obter?

 

Aliás, a lista de direitos adquiridos que vai à vida é longa. Afinal, sem uma alegada chamada da besta do chefe, como é que o respeitável pai de família se escapa ao ritual dos banhos e jantares dos miúdos? E com que desculpa permanece em frente da televisão a ver o jogo, se já não há e-mails enviados a desoras? Para as pobres mães, adeus aos raros momentos de sossego conseguidos à custa do "Deixa-me acabar isto, senão o meu chefe mata-me!", já para não falar na opressão que recairá sobre os infelizes que encontravam nos desmandos da entidade patronal a única maneira de navegar pela internet sem interrupção da ciumenta cara-metade. Ui, para não lembrar como este novo "dever de desconexão profissional" obrigará os casais a conversar à mesa, em lugar de permanecerem de olhos fixos no ecrã, obviamente na expectativa de uma chamada da fábrica. Tão ou mais dramático o novo ímpeto legislativo vai acabar com a possibilidade de fuga à seca das férias com a sogra, tornando complicadíssimo gerir amantes, segundas famílias ou vícios de vária ordem - suspeito mesmo de que há aqui a mãozinha dos desembargadores do famoso acórdão que legitima a violência para resolver o adultério.

 

Infelizmente, ou muito me engano ou daqui a um ano estão a nomear uma comissão para analisar as causas do número crescente de divórcios, e a impor uma taxa moderadora destinada a dissuadir os filhos de apresentarem queixa contra os pais que preferem deixar-se assediar pela entidade patronal a prestar-lhes a atenção que merecem.

 

Apesar de tudo, parece-me que os senhores deputados ainda podiam ir mais longe, defendendo agora o direito à "desconexão profissional" em horário laboral, legitimando assim uma forma de descanso a que muitos se dedicam com militância, como comprova a taxa de produtividade nacional. Sinceramente, só nos faltava que a pretexto de espartilhar o que é do trabalho e o que é do repouso, viesse alguém pôr em causa a meia hora do café da manhã, as saídas à porta para fumar um cigarro, as discussões em hora de serviço gastas na análise ao penálti do jogo da véspera, ou o direito a proceder a um ajuste direto do ordenado ao fim do mês, cortando no tempo despendido em frente da secretária. Para não falar no fim do recreio nas redes sociais! É que já estou a ver um inflamado deputado, confrontado com o facto de os picos de atividade no Facebook se registarem de segunda a sexta, das 11 às 16 horas, a impor o "desligamento" em período laboral. E aí estávamos definitivamente fritos.

 

Jornalista

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico 

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