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29 de Janeiro de 2020 às 17:48

A farsa e a tragédia no debate orçamental

Um vasto conjunto de propostas decorre de incompreensão sobre a natureza de um orçamento. Este tem por função autorizar a despesa necessária à execução de políticas públicas e a receita necessária à cobertura dessa despesa.

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Na próxima semana, o Plenário da Assembleia da República debate na especialidade o Orçamento do Estado para 2020, incluindo as cerca de 1.300 propostas de alteração apresentadas pelos deputados e grupos parlamentares. Estando reservados 442 minutos para esse debate, cada proposta tem, portanto, cerca de 20 segundos para ser debatida.

 

O aumento do número de propostas de alteração estará relacionado com a existência de três novos partidos no Parlamento, mas desiluda-se quem daí esperava um qualquer refrescar do debate. Os partidos novos foram rápidos a adotar vícios velhos. As suas propostas engrossam o conjunto daquelas que pertencem ao domínio da inutilidade jurídica - proclamações no sentido de o Governo ponderar, estudar ou "empenhar todos os esforços" (798-C, da Iniciativa Liberal) num sentido qualquer. Ou das que são ineptas, como as que mandam o Governo fazer algo que só a Assembleia da República, por lei, pode fazer (998-C, do Chega). Ou das que suscitam um debate que é totalmente estranho à matéria orçamental, como a bastante noticiada proposta do Livre relativa aos "objetos trazidos das antigas colónias" (1114-C).

 

Um vasto conjunto de propostas decorre de incompreensão sobre a natureza de um orçamento. Este tem por função autorizar a despesa necessária à execução de políticas públicas e a receita necessária à cobertura dessa despesa. As políticas não têm de ser legisladas no próprio Orçamento (os deputados têm, todo o ano, poder autónomo de iniciativa legislativa) e em regra não o devem ser, precisamente porque o amontoar dos temas prejudica qualquer discussão séria relativamente a cada um deles. Não faz qualquer sentido que se incluam no Orçamento normas sem conteúdo orçamental relevante (por exemplo, matéria de política criminal). O mesmo se diga sobre normas que, se aprovadas, até teriam impacto na despesa, mas não alteram a despesa orçamentada, criando uma política pública que o Parlamento aprovaria sem aprovar os correspondentes meios financeiros - e mesmo sem saber o valor da despesa associada.

 

Temos também propostas que têm efetivo conteúdo orçamental, como acontece com grande parte das propostas em matéria fiscal (o que não quer dizer que tivessem de ser discutidas no Orçamento; pelas mesmas razões, a maioria terá um debate insuficiente). Dentro destas, algumas têm dimensão suficiente de perda de receita para porem em causa os próprios fundamentos do Orçamento, designadamente os objetivos de saldo orçamental. É o caso da redução da taxa de IVA para os consumos energéticos.

 

Creio que é inadequado, quando se procura reduzir o consumo de energia, passar esse consumo à taxa reduzida (ou seja, criar uma subsidiação fiscal do consumo). É certo que o imposto tem um efeito regressivo, mas esse efeito foi largamente atenuado através do alargamento da tarifa social da energia. Sei também que esta redução não pode ser feita sem uma decisão europeia favorável, através de consulta ao Comité do IVA. Como as propostas não preveem a consulta e é no mínimo duvidoso que tal decisão favorável viesse a acontecer, porque a redução de taxa discrimina dentro do mesmo produto, daí resulta a ilegalidade da proposta, como é referido, e bem, pelo ministro das Finanças.

 

Há contudo aqui uma outra questão política. Um partido - o PSD - que anuncia aos quatro ventos que já teria conseguido superavit orçamental há dois anos, quando tem perante si um Orçamento que efetivamente tem superavit, logo propõe uma medida que, só por si, com uma redução de receita de centenas de milhões de euros, elimina esse superavit. Torna-se evidente que estão a brincar aos orçamentos.

 

Professor de Direito

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