Opinião
O pior de nós
Lembro dessas personagens sempre que esbarro em figuras como Trump, Bolsonaro, Beppe Grillo e os seus genéricos nacionais. E recordo que foi para eles que se criou a palavra “caquistocracia”, o sistema de governo em que os líderes são escolhidos por serem os piores cidadãos.
Nunca tivemos o acesso tão fácil às memórias das gerações passadas e mesmo assim não aprendemos nada com os avisos feitos. Desde que inventámos a linguagem nunca deixámos de acumular advertências. Só não temos vocação para cometer erros novos, gostamos dos erros de sempre.
Para quem tem mais de 50 deve ser fácil recordar a figura de Odorico Paraguaçu: o Bem Amado Autarca de uma cidade do interior da Bahia, sonhava inaugurar um cemitério (cada um entra para a posteridade como pode ou quer) só que ninguém morria dentro dos limites da sua jurisdição. Desesperado, procura matar (sem sucesso) alguns dos seus próprios eleitores em planos mirabolantes. Atrasar a vacinação contra uma possível epidemia foi apenas um dos muitos expedientes que tentou.
Odorico era uma personagem de ficção, anti-herói de uma telenovela, de um filme, de uma peça de teatro. Assim como Adenoid Hynkel, o nome do déspota vivido por Chaplin em “O Grande Ditador”. Paródia de Hitler (feita no momento em que este ainda tentava conquistar o planeta) serviu de alerta, mas não impediu que houvesse a Segunda Guerra Mundial. O humor denuncia, mas raramente é levado a sério, sabe-se lá o porquê.
Como uma espécie de tio-avô direito de Odorico temos o Dr. Simão Bacamarte, filho da pena de Machado de Assis. Bacamarte aparece na novela “O Alienista”, publicada em 1882. Na obra acompanhamos as idas e vindas políticas de uma comunidade a partir do impacto causado pelas tentativas de Bacamarte de separar os loucos dos normais. No começo, a ideia era internar os que teriam algum desvio de caráter. Quando há na vila mais internados do que não internos, muda-se o critério: loucos passam a ser os de boa índole, pois são a minoria, logo, fora da norma. Por fim, sobrará apenas um não interno, o próprio Bacamarte. Que então decide mais uma vez inverter o ônus. Declara-se louco e liberta o resto da população.
Lembro dessas personagens sempre que esbarro em figuras como Trump, Bolsonaro, Beppe Grillo e os seus genéricos nacionais. E recordo que foi para eles (e para as suas turbas de seguidores) que se criou a palavra “caquistocracia”, o sistema de governo em que os líderes são escolhidos por serem os piores cidadãos.
Apesar de sua origem grega foi só no século XX que o termo ganhou notoriedade e uso alargado. Mussolini, Stalin, Ceausescu, Idi Amim, Gaddafi... a lista é extensa e agrega gente de direita e de esquerda indiscriminadamente. E não pára de crescer.
Faz parte da democracia achar (ou saber) que o governo de turno é imperfeito. Daí que, mais tarde ou mais cedo, será substituído por quem lhe fizer oposição. A democracia pressupõe que, na tentativa de acertar, vamos errar. Para depois corrigir a mão.
Só líderes caquistocráticos acreditam que podem se perpetuar no poder. Mesmo que para isto precise convencer os seus adeptos a um doce suicídio coletivo, seja por doença, por guerra ou por fome. Para quem acha que isso é impossível de acontecer por aqui, resta lembrar que, segundo os livros de história, já aconteceu mais de uma vez.
Ah, Odorico Paraguaçu acabou por morrer e assim pôde, enfim, ele mesmo, inaugurar o seu tão amado cemitério. O que não deixou de ser um final feliz.
Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar H. L. Mencken: “Democracia é a arte de, a partir da gaiola dos macacos, gerir o circo.”